18 dias de greve nacional e vitória popular no Equador
Após 18 dias de greve nacional foi convocado o painel pelas três principais organizações indígenas do Equador, de 13 a 30 de junho de 2022, que culminou numa mesa de diálogo entre o governo neoliberal de Guillermo Lasso Mendoza e a Confederação de Nacionalidades e Povos Indígenas do Equador (CONAIE), Federação Nacional de Organizações Camponesas Indígenas e Negras (FENOCIN) e Federação Equatoriana de Povos Indígenas Evangélicos (FEINE). O painel de diálogo tem como objetivo avançar nos dez pontos levantados além do anexo sobre a redistribuição das rendas petrolíferas e para o qual estas organizações decidiram convocar a greve.
De acordo com o comunicado feito pela CONAIE, em 1º de julho de 2022, foram anunciadas as conquistas em torno de cada um dos principais pontos, dizendo o seguinte:
A partir da continuidade dos grupos de trabalho, estabelece-se que as ações não se configuram apenas em torno da decisão do poder executivo, mas também atravessam todos os poderes do Estado, tanto o poder legislativo, o judiciário, o poder eleitoral e o poder transparência e controle social, grupos de trabalho que tem 90 dias como data final para apresentar os avanços sobre as demandas sócias, com a sombra de outra greve se for o caso dos grupos não terem respostas reais sobre os dez pontos e também com a possibilidade de prenderem aos dirigentes das organizações indígenas num ato de sequestro para obrigá-los assinar um acordo antipopular.
A capacidade das organizações que convocaram a greve também conseguiu gerar uma discussão sobre a alocação de recursos das rendas de mineração e petróleo, tentando separar os governos territoriais como prefeituras e governações e fazer alocações diretas para as comunidades, povos e nacionalidades indígenas por enquanto que a maioria das mesmas áreas de exploração são encontradas nos territórios ancestrais.
Por outro lado, no marco da greve de 22 a 26 de junho, foi debatida a figura da “Morte Cruzada”, uma espécie de impeachment reconhecido pela Constituição do Equador, para destituir o presidente Lasso e convocar eleições antecipadas, que por falta de oito votos na Assembleia Nacional não se concretizou.
Todos esses elementos produziram uma crise ministerial para alterar algumas carteiras do Estado, até o momento foi confirmada a saída dos ministros da Economia e da Saúde, não se conhece ainda qual vai ser a posição respeito ao Ministro da Polícia e Interior, o mesmo que as organizações que convocaram para greve exigiram ao governo nacional.
A incapacidade do governo de criar acordos que permitam a governabilidade se expressa na perda de influência na esfera parlamentar, bem como na rejeição generalizada na sociedade, deixando-o com uma aceitação de 17% segundo as principais empresas de pesquisa do Equador. Isso se soma um processo de cassação do mandato por plebiscito a pedido de diversas organizações sociais, que não participaram das mobilizações sociais convocadas pelo setor indígena por descumprimento do plano de governo registrado no poder eleitoral, que na primeira instância foi rejeitada e que já se encontro com recurso de apelo.
Esse panorama abre uma brecha para diversas possibilidades e elementos de análise sobre a realidade política, social e econômica do país.
A primeira, que fica marcada como parte da história política do Equador, é a incapacidade da oligarquia, do capital financeiro e de seus governantes, durante o retorno à democracia desde 1979, de impor um modelo neoliberal como no resto das nações da América do Sul, já que a capacidade de mobilização das classes populares, fazem que o modelo de privatização e redução do Estado, cair com seu próprio peso.
O segundo elemento é a possibilidade de eleição presidencial no final do ano ou no próximo, gerando uma mudança de governo e de políticas econômicas e sociais ou, pelo menos, uma tendência ao desgaste e incapacidade de cumprir com o Fundo Monetário Internacional (FMI) na aplicação das receitas e cartas de intenção assinadas a partir de 2016 para aquisição de dívida com a referida entidade financiadora multilateral, o que pode ser evidenciado pela pressão social e pelas constantes crises ministeriais que o governo enfrenta durante seu primeiro ano de mandato.
Um terceiro elemento é entrar no debate sobre a capacidade das classes populares de criar um plano de governo, seja para uma possível convocatória antecipada a eleições gerais, seja para 2025, que culmina o atual período constitucional da Assembleia Nacional e da Presidência do Executivo, um plano de governo que poderia se tornar um conjunto de demandas populares em vários espaços do Estado, mas sobretudo com uma política pública de redistribuição de riqueza e ampliação dos direitos individuais e coletivos.
Um quarto elemento, que não foi mencionado, é a criminalização do protesto social, o uso da justiça para a criação de tribunais especiais anticomunistas, já que não só há o julgamento contra o Camarada presidente da CONAIE Leónidas Iza Salazar, mas também aos dirigentes de outras organizações como FEINE, FENOCIN, das lideranças das filiais da CONAIE como os presidentes da ECUARUNARI e CONFENIAE, além dos presos no contexto da greve, bem como prisões anteriores por supostos crimes de rebelião contra integrantes de organização urbana denominado “Movimento Guevarista Terra e Liberdade”, a maioria dos quais foram denunciados sob os tipos penais de Paralisação do Serviço Público, Sabotagem e Terrorismo, tipos penais estabelecidos no Código Penal após a Constituição de 2008.
Um quinto elemento a ser evidenciado é o uso do terrorismo de estado pelo executivo equatoriano para controlar qualquer dissidência política, assim se evidencia desde as mobilizações de 2008 na Província de Orellana e agravando-se com a greve nacional de 2019 e na greve nacional de Junho de 2022, assassinatos extrajudiciais, violações de campus universitários, violações de centros humanitários e centros de saúde, sequestros pelo Estado, prisões em massa e arbitrárias, uso exacerbado das Forças Armadas para conter protestos sociais com e sem as pertinentes declarações de estados de exceção, tentado criar um estado de medo com a população em geral como a intencionalidade de se perpetuar no poder, sob o pretexto de guerrilhas urbanas, narco-terrorismo ou simplesmente desestabilização do poder executivo.
Por outro lado, fica evidente a maturidade das organizações sociais e indígenas quando entendem que as demandas, sendo estruturais, produto de um sistema capitalista em crise, que tem aumentado as desigualdades sociais e econômicas, não dependem do governante no poder mas sim do próprio Estado e não de seus representantes, o que faz crescer a consciência social e se configura uma posição cada vez mais ampla do que simples demandas conjunturais ou que acabam em manipulações para mudanças no poder executivo sem dar respostas às demandas sociais em geral.
Essa elevação da consciência social nos setores sociais e indígenas, apesar da heterogeneidade de seus componentes, serviu ao mesmo tempo para gerar expurgos em torno das lideranças das principais organizações, portanto, a capacidade de controlar e manipular da direita e a oligarquia para continuar o mesmo sistema de opressão não tem sido funcional nas revoltas recentes. A organização indígena atual afastando-se de reivindicações temporárias ou plataformas políticas estrangeiras e criando, ampliando e unificando demandas da maioria dos setores excluídos da sociedade, fazendo uma aliança campo-cidade que permite a criação de um movimento social, talvez rompendo o esquema da doutrina leninista tradicional, mas um movimento com capacidade de levantar as bandeiras revolucionárias para um novo esquema de ação.
Colocando em debate público a gestão e alocação de recursos públicos, a demanda por uma mudança no modelo econômico não vinculado à exploração de petróleo, a demanda por justiça social com os excluídos desde a conquista, bem como a unidade do campo e da cidade para uma reação contra os próprios modelos econômicos capitalistas, deixam claro que a crise orgânica do sistema, pelo menos no Equador, é o gatilho para processos de revolta que num momento podem nos levar a um triunfo revolucionário, seja pelo caminho da eleição através de um plano de governo popular, ou através de uma insurreição geral liderada pelas classes populares.
Essa dinâmica social, ao mesmo tempo em que confirma a teoria de José Carlos Mariátegui, sobre o caráter da população indígena andina como sujeito revolucionário, também confirma a necessidade dos próprios indígenas retomarem seu sistema de Socialismo Indígena baseado no cooperativismo social, a comunidade como base da estrutura social, um sistema de trabalho comunitário e um sistema de assembleias populares para a tomada de decisões, deixando de fora os poderes do Estado burguês, como pode ser visto em muitas das comunidades e populações indígenas hoje.
O último elemento a serem considerado, é a possibilidade de uma reação da direita internacional de não perderem os últimos bastões neoliberais e da direita, pois o possível ganho de Lula em novembro, o ganho de Gustavo Petro na Colômbia e uma possível destituição ou redução da doutrina neoliberal no Equador faz que novos dias no continente sejam próximos.
Camilo Saavedra