Rostos da Resistência: Um Diário da Guerra Não Declarada do Equador Contra Seu Próprio Povo
Eram 5h (GMT-5). O transporte que me levaria até Otavalo, na província de Imbabura, estava prestes a chegar. O frio da serra andina começava a castigar meu corpo, ainda se reaclimatando à altitude e ao frio das madrugadas de Quito. Eu tremia, não apenas pelo frio, mas pela adrenalina que começava a correr nas veias, sabendo que estava a ponto de embrenhar-me nas comunidades indígenas.
No dia anterior, uma camarada do Equador me ligara e, num tom solene, perguntou se eu poderia ajudar nas zonas de conflito entre a população e as forças repressivas do Estado. Aceitei sem hesitar. Era uma oportunidade de entender, ajudar e contribuir com uma população que sofrera uma repressão terrível no dia 14 de outubro.
Partimos de Quito ainda na escuridão, integrando uma caravana humanitária que levava alimentos, mantimentos e, o mais crucial, medicamentos e suministros médicos. O sistema de saúde de Imbabura estava em colapso: mais de 450 feridos, muitos com lesões causadas por munição real e espingarda, utilizadas pelos militares – que juraram defender o povo equatoriano, mas agora voltavam suas armas contra ele, sob as ordens de um governo de características fascistas – e pela polícia nacional.
Ao sair de Quito, deparamo-nos com o primeiro de quatro postos de controle militares instalados nas saídas da cidade para impedir a chegada de ajuda humanitária à população, que estava sendo sitiada e atacada durante todo o Levantamento Popular Plurinacional (LPP). No próprio posto, o sentimento de raiva e indignação se intensificou quando o militar encarregado, mesmo após nos identificarmos como imprensa, tentou nos intimidar, apontando seu fuzil para todos os presentes enquanto exigia que deixássemos a ajuda com eles.
O procedimento se repetiu nos outros três postos. Tanto policiais quanto militares tentavam, desesperadamente, reter a verdadeira ajuda destinada à população indígena de Imbabura. Um dia antes, o governo anunciara que enviaria um "comboio humanitário", um eufemismo para a mobilização de mais de 7 mil efetivos militares e policiais, o reabastecimento de munição utilizada para atacar manifestantes pacíficos, o uso de blindados de guerra, helicópteros artilhados e mais ferramentas para semear o terror na província. Até o Comitê da Cruz Vermelha Equatoriana reconheceu que aquele comboio era simplesmente uma operação militar, desprovida de qualquer protocolo ou verificação independente sobre sua verdadeira carga e finalidade – que se revelou ser o massacre de camponeses, mulheres, crianças, idosos, jovens e povos originários pelas forças armadas.
Após passar pelos postos militares, já eram mais de 7h da manhã. Em uma viagem que normalmente leva uma hora, finalmente chegamos ao primeiro ponto de barricadas populares. O companheiro que liderava nossa caravana desceu, conversou com o responsável pela barricada e fomos recebidos com a hospitalidade e alegria características das comunidades. Cumprimentamo-nos e compartilhamos o café da manhã com eles, no meio da rua, enquanto o vento que descia do nevado vulcão Cayambe esfriava nossos copos de café e água de cidró com pinol, acompanhados de biscoitos salgados e ovos cozidos.
Enquanto comíamos, pedi permissão para tirar algumas fotos, o que foi educadamente negado. A explicação foi simples: o Estado equatoriano está usando publicações fotográficas da mídia para identificar a população e abrir processos judiciais contra quem ousa levantar a voz contra o governo atual.
Processos por terrorismo têm sido o instrumento preferencial do Estado, por meio do Ministério Público, para criminalizar os protestos, enquanto agentes ligados a atos de terrorismo real – como a colocação de carros-bomba em áreas povoadas de diferentes cidades do Equador – são absolvidos. No contexto do LPP de setembro de 2025, há mais de 50 casos abertos com base neste crime, principalmente contra líderes populares, indígenas, sindicais e estudantis.
Deixando parte dos mantimentos nessa primeira barricada, retomamos a viagem para o norte, passando por diversos pontos de resistência popular, conversando com comunitários, gente comum que perdeu o medo e enfrenta com paus e pedras as balas do fascismo. Uma viagem que normalmente duraria duas horas e meia tornou-se uma jornada de oito horas, atravessando diferentes redutos da resistência, onde a alegria e as risadas de nossos povos originários persistiam, apesar dos mortos, dos feridos e da repressão.
Ao nos aproximarmos de Otavalo, o ânimo mudou. Sabíamos o que nos aguardava. O Ministério da Saúde Pública do Equador havia proibido o atendimento médico aos feridos pelas forças militares; aqueles que buscavam ajuda eram perseguidos e hostilizados por policiais e soldados que tentavam capturá-los. Nas cidades de Otavalo e Cotacachi, casas e algumas escolas transformaram-se em postos de atendimento de emergência. As unidades de saúde, desafiando a proibição do ministério, estavam sobrecarregadas. Algumas clínicas privadas, cujos nomes não serão divulgados por segurança, auxiliaram no tratamento necessário dos feridos.
Já se passavam mais de 24 horas desde o início dos ataques militares contra a população indefesa, e o caos pela necessidade de insumos médicos, medicamentos e tratamentos de emergência persistia. Enquanto isso, no centro de Otavalo, realizava-se uma reunião entre o ministro do Interior e alguns líderes do movimento indígena da província. A catástrofe desencadeada pelo governo era palpável. Mais de 450 feridos entre Cotacachi e Otavalo continuavam à procura de assistência médica e dos remédios prescritos. O descontentamento social crescia a cada hora.
Ao final da reunião, com o anúncio de uma trégua entre as organizações indígenas e as forças repressivas do Estado, a indignação explodiu entre as bases. As lideranças da maioria das organizações foram repudiadas, consideradas traidoras dos feridos e mortos por falarem em trégua sem qualquer compromisso do Estado em cessar a repressão ou reverter as medidas econômicas que levaram às mobilizações.
As comunidades chegaram a aplicar um processo de justiça indígena contra vários desses dirigentes, resultando na destituição de seus cargos e na renovação das cúpulas provinciais. A população, já enfurecida pelas zombarias dos ministros, pelas mentiras veiculadas na mídia e pela incapacidade de suas lideranças em negociar acordos concretos com o Executivo, via a trégua como uma rendição inaceitável.
A viagem de volta foi igualmente complicada, com as barricadas e as posições agora radicalizadas. Mesmo sob a proteção das próprias organizações, o medo era constante – não pela reação dos comunitários, mas pela ameaça do governo de retornar com força total para reprimir a população.
Ao chegar a Quito, carregado da indignação de ter testemunhado tudo o que ocorreu, participei de várias ações para coletar mais insumos e continuar abastecendo o essencial para as populações que lutam por melhores condições de vida para todo um povo.
No dia 22, uma semana após a viagem, o presidente da CONAIE, Jaime Vargas, emitiu um comunicado pedindo o fim do LPP. Muitas bases indígenas ignoraram a ordem e, declarando-se em assembleias comunitárias permanentes, começaram a eleger novas lideranças. Com o plebiscito para convocar ou não uma nova Assembleia Constituinte, as ações de protesto nas ruas diminuíram, canalizando as energias para a campanha pelo "NÃO" no referendo.
Apesar das decisões tomadas, o descontentamento e as causas originais do Levantamento Popular Plurinacional permanecem sem solução, o que pode culminar em um movimento ainda maior e mais generalizado da população contra as políticas públicas do atual governo.
Esta narrativa é dedicada à memória de Efráin Fuerez, Rosa Paqui e José Guaman, mártires do povo na luta contra o neoliberalismo e o fascismo. Que sua semente irrigue nossa Abya Yala de milhões de lutadores, para conquistar nossa liberdade e construir um mundo melhor.
Camilo Saavedra
