O sonho e a realidade de Marília Beviláqua
I - Marília, você é uma cantora profissional que gozou do sucesso e que teve também a carreira interrompida. Como você nos conta esta história?
MB - É uma história interessante e que vem de muito longe. Eu tinha cinco anos de idade quando cantei pela primeira vez num palco de circo. Meu pai era dono de um grande circo e resolveu fazer uma experiência. Eu cantava músicas de carnaval em casa e ele achou que eu era afinadinha e que dava para a coisa. Ele me levou para o palco - minha mãe fez uma roupa de baiana - e a primeira música que cantei foi de carnaval. Corria o início da década de 50.
I - Auspiciosamente, não?
MB - Eu passei a trabalhar no circo e era muito aplaudida. Naquela época era hábito jogarem moedinhas no palco e, no dizer do meu pai, pelas moedas que atiravam, eu agradava bastante. Comecei a fazer parte da troupe. Meu pai era ator e cantava em dupla com minha mãe; um circo teatro onde meu pai era tudo, organizador, diretor de espetáculo, era o palhaço e o cantor além de escrever peças e compor músicas. Era um excelente violonista e a música era presença obrigatória nos espetáculos. Meus pais eram sucesso garantido. Minha mãe se caracterizava de Carmem Miranda...
I - Era uma família musical e de enfrentar o palco?
MB - Claro! Nós enfrentávamos tudo! Chuva, sol. Transportávamos as coisas em lombo de burro, encarávamos lama, andávamos em cima de caminhão, enfim, era assim a vida de circo.
I - E como você foi do circo ao rádio?
MB - Meus pais receberam uma proposta de contrato, isso em Fortaleza… Foi na Rádio Clube de Fortaleza. Eu fui para lá pelas mãos de meus pais, pois os contratados eram eles. O meu pai disse que tinha uma filha que também cantava e levou-me até a Rádio. O Diretor quis me ouvir. Cantei um grande sucesso da Angela Maria, na época, Lábios de Mel, e a direção da Rádio ficou impressionada. Ganhei o meu primeiro contrato, tinha sete anos, e passei a integrar o “cast” da Rádio Clube de Fortaleza. Daí em diante eu me apresentei em vários lugares, excursionei, fui para a Rádio Educadora de Sobral e lá trabalhei por muito tempo. Depois passei a substituir minha mãe na dupla. Meu pai fazia a segunda voz e eu a primeira.
I - Um fenômeno, realmente!
MB - Eu me lembro de ter enfrentado o público pela primeira vez no Rádio. Não era estúdio, era um auditório, um pequeno auditório. Eu cantei e quando terminei fui correndo para o banheiro, tal a tensão emocional. O circo era diferente, eu me sentia mais à vontade. O Rádio era a novidade. Frequentei shows até chegar ao Rio.
I - E como você chegou ao Rio?
MB - Eu cheguei em 1962 mas antes com uma passagem pelo Recife - Emissoras Associadas de TV - Sucursal da TV Tupi. Lá fiz vários programas para depois então vir para o Rio de Janeiro com uma cana de recomendação para o Paulo Gracindo que tinha um programa de auditório. Cantei muito em seu programa. Ele até dizia que era meu padrinho artístico. Recebi dele um grande apoio e foi em seu programa que eu consegui a minha primeira gravação com a Phillips do Brasil.
I - Com que idade você gravou por primeira vez?
MB - Com 12 anos. Nessa época, o Diretor da Phillips, Osmar Navarro, ficou muito interessado e me levou para a gravadora. Foi muito bom para mim. Foi o meu primeiro contrato com uma gra- vadora.
I - Você lembra as primeiras músicas gravadas?
MB - Gravei Vai meu Barquinho uma balada de autoria do meu pai e do outro lado, uma música de Jacobino Almeida Rego Canção da Menina Triste. Eu trabalhei bastante o meu disco. Antigamente era diferente. Hoje em dia, pelo problema da própria mídia, você tem que lançar uma música atrás da outra. Naquela época você lançava um disco e trabalhava um ano aquele lançamento para depois então pensar em gravar novas músicas. Então eu fiz o compacto e um contrato de três anos com a Gravadora que bancava tudo. Hoje você tem que bancar 50%. Eu levei um ano trabalhando a música. Em 66 meu pai adoeceu gravemente e era ele quem andava comigo para todos os lugares. Era meu anjo guardião. Eu tinha meus 13 anos e ele era muito cuidadoso, tinha aquele zelo... Eu não tinha quem me acompanhasse. Dei uma parada, pedi à Phillips que rescindisse o meu contrato e eles rescindiram.
I - Aí você parou?
MB - Fiquei sem gravar mas fazendo shows pois já tinha muitos amigos, como Haroldo de Andrade, na Globo, o finado Paulo Moreno... Eu me apresentava também em circo, as chamadas caravanas. Eu, o Roberto Audi, com quem me apresentei muitíssimas vezes, a Rosemary que estava iniciando a carreira, o Aguinaldo Thimóteo, a Joelma que cantava muito bem, o Aguinaldo Rayol que era um grande amigo, tanta gente que iniciou comigo, o Edu Lobo, o Quarteto em Cy. Era a época da bossa-nova que estourava com Nara Leão. Eu cantava as minhas baladas e eles cantavam a bossa-nova, já no auge. Eu tinha uma grande amiga que até hoje se conserva, a Rosa Maria que agora canta mais o jazz. Fazíamos shows juntas. Uma grande amiga! Depois parei. Me casei, meu marido era radialista e achou por bem que eu não deveria continuar.
I - Para o seu mal e o de todos...
MB - Mas aí pintou um contrato com uma gravadora, a Continental. O Diretor ficou muito interessado e tanto perturbou o meu marido que ele acabou consentindo que eu voltasse a gravar. Era o auge da jovem guarda e ele tomando a iniciativa achou que eu devia gravar música jovem. Eu ouvi várias músicas do Rossini Pinto que fazia muitas versões e na última hora meu marido disse: - “Olha, eu fiz uma letra e se o seu pai entrar em parceria vai ser muito bom. Eu vou levar essa letra para ele pôr a música. Vamos ver se ele faz um iê-iê-iè”. O Diretor disse que seria ótimo. Meu pai concordou em fazer mas exigiu que eu gravasse uma música séria pois ele tinha aquele romantismo todo e apresentou uma balada lindíssima chamada Morena. Eu gravei Namoro de Playboy e Morena, que é realmente uma balada muito bonita.
I - Afinal, quem era o seu marido, este radialista misterioso?
MB - Era o Euclides Duarte. Quando eu estava no pique, a minha música foi muito executada. Tanto que me apresentei no Programa Jair de Taumaturgo, Hoje é Dia de Rock, e, logicamente, pelo sucesso que a música alcançou, na TV, no Rio Hit Parade com Murilo Nery como Marília de Fátima que era o meu nome artístico. Eu cheguei ao 5o lugar nas paradas de sucesso, me apresentei em todos os lugares, fazia shows com Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Wanderléa, naquela época do Ed Wilson, aquela turma boa, gravei com The Fevers...
I - Quer dizer: você estava com a carreira mais do que feita!..
MB - Sim, depois o Diretor da gravadora propôs que eu gravasse um LP. Muito bem, começamos a preparar o disco, a escolher as músicas - escolhi as de Rossini Pinto, Roberto e Erasmo, do Ed Wilson, do Neneu, um rapaz na época muito cotado e quando tudo estava prontinho para gravar deu tudo pra trás... O meu marido era muito ciumento. Ele deu pra trás, alegou que seria difícil. Enquanto a coisa rolou entre Rio e São Paulo era tudo tolerável. Onda Jovem, no TV Fone assim que a TV Globo começou, lá estava eu, todos os sábados. No Canal 6 - Onda Jovem e em São Paulo no Jovem Guarda.
I - Não havia essa coisa de exclusividade?
MB - Não. Naquela época havia uma grande união. Todos tinham as mesmas oportunidades, todos podiam se apresentar, com chances iguais, todos eram convidados. Era muito bom.
I - Em sua opinião porque a coisa mudou nesse aspecto?
MB - Eu acho que se desenvolveram os grupinhos. Organizou- se um bloqueio e quem está de fora não entra e quem está dentro não sai. Ficou muito difícil para quem está começando. Mesmo com talento, fica difícil penetrar nesse meio, nesses grupos. Eles não permitem. São os oligarcas da música.
I - Você acha que são esses oligarcas que estão matando a nossa música popular?
MB - Sim. Eles impõem estilos, ritmos, uma coisa que até muitas vezes você nem quer, no íntimo, mas é obrigado a aceitar. A juventude de hoje não sabe o que é a boa música. Não que os jovens não tenham capacidade. Eles não têm é a oportunidade de ouvir a boa música e aí o desenvolvimento crítico fica a desejar. Os jovens só ouvem o que lhes é imposto.
I - Você que é uma cantora identificada com a boa música acha que a nossa cultura musical pode voltar a ocupar o seu espaço e fazer o público acordar novamente para o que é nosso?
MB - Nós temos público. Em qualquer lugar em que se toque esse tipo de música que é a nossa verdadeira tradição musical o público fica embevecido. O jovem gosta mas não está habituado a ouvir. O que fazem com a nossa juventude é pura lavagem cerebral. Uma rádio como a 98 FM, que é ouvida por grande parte do público, pela massa e que toca mais de dez vezes por dia a mesma música - “lá vem o negão”, etc... está contribuindo para este triste quadro pois qualquer pessoa que ouça isso dez vezes ao dia acaba, mesmo subconscientemente, cantarolando isso, é claro! Você pode até não gostar, não querer, mas ao final do dia você está lá... Tica-tá, tica-tá, tica-tá... Depois a música estrangeira, os metaleiros, aquela música pesada. Todas com o mesmo propósito de afastar a qualidade musical do entendimento e da formação da juventude. Mas a música popular brasileira tem público e resiste.
I - Voltando à sua carreira. Como está a sua volta?
MB - Hoje as chances são mínimas. Eu estou com o Claudionor Cruz. Vamos fazer os festivais. Vamos para o Festival da Cidade do Rio de Janeiro. Se entrar a música dele - que é muito bonita - uma espécie de bossa-nova e muito bem feita vão ter que escutar com a atenção devida e garanto que todos vão gostar.
I - É você quem defende?
MB - Sim, eu vou defender como também estarei no Festival do Chorinho do João Caetano onde também defenderei duas ou três peças do Claudionor.
I - Como você se vê hoje, Marília Beviláqua depois do sucesso de Marília de Fátima? Não há prejuízo nessa mudança de nome?
MB - A maioria das pessoas, atualmente, me reconhece como Marília Beviláqua, como a cantora que acompanha o Claudionor Cruz. E uma identidade. Ligam-me ao Claudionor. Houve a época da Marília de Fátima, muito boa época, de grande sucesso, mas eu sou reconhecida hoje pelos antigos da época da jovem guarda. O meu nome é Marília de Fátima Beviláqua. Resolvi voltar como Marília Beviláqua, talvez um desafio. Hoje vivo a Marília Beviláqua que se apresenta onde há possibilidade para cantar as músicas de Claudionor Cruz. Seja num show, numa churrascaria ou numa outra casa noturna, eu apresento as músicas de Claudionor que infelizmente ficam restritas a um público mais fechado. o que é uma pena porque suas músicas tinham que ser gravadas. Não só por tudo o que ele representa na história do nosso cancioneiro popular. Falo por suas músicas atuais, pois as antigas todos conhecem. Esse grande compositor brasileiro, saibam todos, continua produzindo, trabalhando e vivo! Ele continua presente e eu faço questão de fazê-lo presente também através de suas músicas pois o talento e o valor deste compositor é inquestionável. Esta é a minha forma de contribuir para o soerguimento das nossas reservas culturais.
I - A Marília então renasceu!
MB - Eu costumo dizer que hibernei durante algum tempo e acordei cantando. Isso é maravilhoso. A maturidade e o sentimento trazem-me um novo alento. Quando menina eu cantava porque sabia. Hoje canto porque sinto o que canto e muito do que canto eu vivi. A música hoje me comove, me cala mais fundo. Eu sou uma pessoa muito romântica. Essas talvez sejam diferenças entre a Marília de ontem e a que hoje acordou.
Entrevista publicada no Jornal INVERTA Nº 42 - Dezembro de 1994