O sonho e a realidade de Marília Beviláqua

Sem dúvida um fenômeno musical posto que aos 5 anos iniciava uma trajetória e aos doze já via reconhecido seu talento precoce. Cantora de incomparável timbre de voz, Marília (de Fátima) Beviláqua, que conheceu o sucesso nos tempos áureos da chamada jovem guarda e da bossa-nova, expõe ao público a sua história e volta a ocupar o lugar que esta própria história lhe reservou: a ribalta e o calor daqueles que reconhecem o verdadeiro culto do cancioneiro popu­lar.

I - Marília, você é uma can­tora profissional que gozou do sucesso e que teve também a carreira interrompida. Como você nos conta esta história?

MB - É uma história interes­sante e que vem de muito longe. Eu tinha cinco anos de idade quando cantei pela primeira vez num palco de circo. Meu pai era dono de um grande circo e resol­veu fazer uma experiência. Eu cantava músicas de carnaval em casa e ele achou que eu era afinadinha e que dava para a coisa. Ele me levou para o palco - minha mãe fez uma roupa de baiana - e a primeira música que cantei foi de carnaval. Corria o início da década de 50.

I - Auspiciosamente, não?

MB - Eu passei a trabalhar no circo e era muito aplaudida. Na­quela época era hábito jogarem moedinhas no palco e, no dizer do meu pai, pelas moedas que atiravam, eu agradava bastante. Comecei a fazer parte da troupe. Meu pai era ator e cantava em dupla com minha mãe; um circo teatro onde meu pai era tudo, organizador, diretor de espetáculo, era o palhaço e o cantor além de escrever peças e compor músicas. Era um excelente violonista e a música era presença obrigatória nos espetáculos. Meus pais eram sucesso garanti­do. Minha mãe se caracterizava de Carmem Miranda...

I - Era uma família musical e de enfrentar o palco?

MB - Claro! Nós enfrentáva­mos tudo! Chu­va, sol. Transportávamos as coisas em lom­bo de burro, encarávamos lama, andávamos em cima de caminhão, en­fim, era assim a vida de circo.

I - E como você foi do cir­co ao rádio?

MB - Meus pais receberam uma proposta de contrato, isso em Fortaleza… Foi na Rádio Clube de Fortaleza. Eu fui para lá pelas mãos de meus pais, pois os contratados eram eles. O meu pai disse que tinha uma filha que também cantava e levou-me até a Rádio. O Diretor quis me ouvir. Cantei um grande sucesso da Angela Maria, na época, Lábios de Mel, e a direção da Rádio ficou impressionada. Ganhei o meu primeiro contrato, tinha sete anos, e passei a integrar o “cast” da Rádio Clube de Fortaleza. Daí em diante eu me apresentei em vários lugares, excursionei, fui para a Rádio Educadora de Sobral e lá trabalhei por muito tempo. Depois passei a substituir minha mãe na dupla. Meu pai fazia a segunda voz e eu a primeira.

I - Um fenômeno, realmen­te!

MB - Eu me lembro de ter enfrentado o público pela pri­meira vez no Rádio. Não era estúdio, era um auditório, um pe­queno auditório. Eu cantei e quan­do terminei fui correndo para o banheiro, tal a tensão emocional. O circo era diferente, eu me sentia mais à vontade. O Rádio era a novidade. Frequentei shows até chegar ao Rio.

I - E como você chegou ao Rio?

MB - Eu cheguei em 1962 mas antes com uma passagem pelo Recife - Emissoras Associadas de TV - Sucursal da TV Tupi. Lá fiz vários programas para depois então vir para o Rio de Janeiro com uma cana de recomendação para o Paulo Gracindo que tinha um programa de auditório. Cantei muito em seu programa. Ele até dizia que era meu padrinho artístico. Recebi dele um grande apoio e foi em seu programa que eu consegui a minha primeira gravação com a Phillips do Brasil.

I - Com que idade você gra­vou por primeira vez?

MB - Com 12 anos. Nessa épo­ca, o Diretor da Phillips, Osmar Navarro, ficou muito interessado e me levou para a gravadora. Foi muito bom para mim. Foi o meu primeiro contrato com uma gra- vadora.

I - Você lembra as primeiras músicas gravadas?

MB - Gravei Vai meu Barqui­nho uma balada de autoria do meu pai e do outro lado, uma música de Jacobino Almeida Rego Can­ção da Menina Triste. Eu traba­lhei bastante o meu disco. Antiga­mente era diferen­te. Hoje em dia, pelo problema da própria mídia, você tem que lan­çar uma música atrás da outra. Naquela época você lançava um disco e trabalha­va um ano aquele lançamento para depois então pen­sar em gravar no­vas músicas. En­tão eu fiz o com­pacto e um con­trato de três anos com a Gravadora que bancava tudo. Hoje você tem que bancar 50%. Eu levei um ano trabalhando a músi­ca. Em 66 meu pai adoeceu grave­mente e era ele quem andava co­migo para todos os lugares. Era meu anjo guardião. Eu tinha meus 13 anos e ele era muito cuidadoso, tinha aquele zelo... Eu não tinha quem me acompanhasse. Dei uma parada, pedi à Phillips que rescindisse o meu contrato e eles rescindiram.

I - Aí você parou?

MB - Fiquei sem gravar mas fazendo shows pois já tinha mui­tos amigos, como Haroldo de Andrade, na Globo, o finado Pau­lo Moreno... Eu me apresentava também em circo, as chamadas caravanas. Eu, o Roberto Audi, com quem me apresentei muitíssimas vezes, a Rosemary que estava iniciando a carreira, o Aguinaldo Thimóteo, a Joelma que cantava muito bem, o Aguinaldo Rayol que era um grande amigo, tanta gente que iniciou comigo, o Edu Lobo, o Quarteto em Cy. Era a época da bossa-nova que estoura­va com Nara Leão. Eu cantava as minhas baladas e eles cantavam a bossa-nova, já no auge. Eu tinha uma grande amiga que até hoje se conserva, a Rosa Maria que agora canta mais o jazz. Fazíamos shows juntas. Uma grande amiga! Depois parei. Me casei, meu marido era radialista e achou por bem que eu não deveria continuar.

I - Para o seu mal e o de todos...

MB - Mas aí pintou um contra­to com uma gravadora, a Conti­nental. O Diretor ficou muito inte­ressado e tanto perturbou o meu marido que ele acabou consentin­do que eu voltasse a gravar. Era o auge da jovem guarda e ele to­mando a iniciativa achou que eu devia gravar música jovem. Eu ouvi várias músicas do Rossini Pinto que fazia muitas versões e na última hora meu marido disse: - “Olha, eu fiz uma letra e se o seu pai entrar em parceria vai ser muito bom. Eu vou levar essa letra para ele pôr a música. Vamos ver se ele faz um iê-iê-iè”. O Diretor disse que seria ótimo. Meu pai concordou em fazer mas exigiu que eu gravasse uma música séria pois ele tinha aquele romantismo todo e apresentou uma balada lindíssima chamada Morena. Eu gra­vei Namoro de Playboy e More­na, que é realmente uma balada muito bonita.

I - Afinal, quem era o seu marido, este radialista misteri­oso?

MB - Era o Euclides Duarte. Quando eu estava no pique, a minha música foi muito executada. Tanto que me apresentei no Programa Jair de Taumaturgo, Hoje é Dia de Rock, e, logicamente, pelo sucesso que a música alcançou, na TV, no Rio Hit Parade com Murilo Nery como Marília de Fátima que era o meu nome artístico. Eu cheguei ao 5o lugar nas paradas de sucesso, me apresentei em todos os lugares, fazia shows com Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Wanderléa, naquela época do Ed Wilson, aquela turma boa, gravei com The Fevers...

I - Quer dizer: você estava com a carreira mais do que fei­ta!..

MB - Sim, depois o Diretor da gravadora propôs que eu gravasse um LP. Muito bem, começamos a preparar o disco, a escolher as músicas - escolhi as de Rossini Pinto, Roberto e Erasmo, do Ed Wilson, do Neneu, um rapaz na época muito cotado e quando tudo estava prontinho para gravar deu tudo pra trás... O meu marido era muito ciumento. Ele deu pra trás, alegou que seria difícil. Enquanto a coisa rolou entre Rio e São Paulo era tudo tolerável. Onda Jovem, no TV Fone assim que a TV Globo começou, lá estava eu, todos os sábados. No Canal 6 - Onda Jo­vem e em São Paulo no Jovem Guarda.

I - Não havia essa coisa de exclusividade?

MB - Não. Naquela época ha­via uma grande união. Todos ti­nham as mesmas oportunidades, todos podiam se apresentar, com chances iguais, todos eram convi­dados. Era muito bom.

I - Em sua opinião porque a coisa mudou nesse aspecto?

MB - Eu acho que se desenvol­veram os grupinhos. Organizou- se um bloqueio e quem está de fora não entra e quem está dentro não sai. Ficou muito difícil para quem está começando. Mesmo com talento, fica difícil penetrar nesse meio, nesses grupos. Eles não permitem. São os oligarcas da música.

I - Você acha que são esses oli­garcas que estão matando a nos­sa música popular?

MB - Sim. Eles impõem estilos, ritmos, uma coisa que até muitas vezes você nem quer, no íntimo, mas é obrigado a aceitar. A juven­tude de hoje não sabe o que é a boa música. Não que os jovens não te­nham capacidade. Eles não têm é a oportunidade de ouvir a boa músi­ca e aí o desen­volvimento críti­co fica a desejar. Os jovens só ou­vem o que lhes é imposto.

I - Você que é uma cantora identificada com a boa música acha que a nossa cultura musical pode voltar a ocupar o seu espaço e fazer o público acordar novamente para o que é nosso?

MB - Nós temos público. Em qualquer lugar em que se toque esse tipo de música que é a nossa verdadeira tradição musical o pú­blico fica embevecido. O jovem gosta mas não está habituado a ouvir. O que fazem com a nossa juventude é pura lavagem cere­bral. Uma rádio como a 98 FM, que é ouvida por grande parte do público, pela massa e que toca mais de dez vezes por dia a mesma música - “lá vem o negão”, etc... está contribuindo para este triste quadro pois qualquer pessoa que ouça isso dez vezes ao dia acaba, mesmo subconscientemente, cantarolando isso, é claro! Você pode até não gostar, não querer, mas ao final do dia você está lá... Tica-tá, tica-tá, tica-tá... Depois a músi­ca estrangeira, os metaleiros, aquela música pesada. Todas com o mesmo propósito de afas­tar a qualidade musical do en­tendimento e da formação da juventude. Mas a música popu­lar brasileira tem público e re­siste.

I - Voltando à sua carreira. Como está a sua volta?

MB - Hoje as chances são mínimas. Eu estou com o Claudionor Cruz. Vamos fazer os festivais. Vamos para o Fes­tival da Cidade do Rio de Janei­ro. Se entrar a música dele - que é muito bonita - uma espécie de bossa-nova e muito bem feita vão ter que escutar com a aten­ção devida e garanto que todos vão gostar.

I - É você quem defende?

MB - Sim, eu vou defender como também estarei no Festi­val do Chorinho do João Caeta­no onde também defenderei duas ou três peças do Claudionor.

I - Como você se vê hoje, Marília Beviláqua depois do sucesso de Marília de Fátima? Não há prejuízo nessa mudan­ça de nome?

MB - A maioria das pessoas, atualmente, me reconhece como Marília Beviláqua, como a can­tora que acompanha o Clau­dionor Cruz. E uma identidade. Ligam-me ao Claudionor. Hou­ve a época da Marília de Fátima, muito boa época, de grande su­cesso, mas eu sou reconhecida hoje pelos antigos da época da jovem guarda. O meu nome é Marília de Fátima Beviláqua. Resolvi voltar como Marília Beviláqua, talvez um desafio. Hoje vivo a Marília Beviláqua que se apresenta onde há possi­bilidade para cantar as músicas de Claudionor Cruz. Seja num show, numa churrascaria ou numa outra casa noturna, eu apresento as músicas de Clau­dionor que infelizmente ficam restritas a um público mais fe­chado. o que é uma pena porque suas músicas tinham que ser gravadas. Não só por tudo o que ele repre­senta na histó­ria do nosso cancioneiro po­pular. Falo por suas músicas atuais, pois as antigas todos conhecem. Es­se grande compositor brasileiro, saibam to­dos, continua produzindo, trabalhando e vivo! Ele con­tinua presente e eu faço questão de fazê-lo pre­sente também através de suas músicas pois o talento e o valor deste compositor é inquestionável. Esta é a minha forma de contribuir para o soerguimento das nossas reser­vas culturais.

I - A Marília então renas­ceu!

MB - Eu costumo dizer que hibernei durante algum tempo e acordei cantando. Isso é maravilhoso. A maturidade e o sentimento trazem-me um novo alento. Quando menina eu cantava porque sabia. Hoje canto porque sinto o que canto e muito do que canto eu vivi. A música hoje me comove, me cala mais fundo. Eu sou uma pessoa muito romântica. Essas talvez sejam diferenças entre a Marília de ontem e a que hoje acordou.

Entrevista publicada no Jornal INVERTA Nº 42 - Dezembro de 1994

Nota de falecimento: "Marilia Bevilaqua presente!"