Entrevista com Vanja Orico
Mulher de múltiplos talentos; da ciganinha de Mulheres e Luzes, de Lattuada e Fellini transformou-se na Mulé Rendeira de O Cangaceiros na inesquecível Maria Bonita em Lampião, Rei do Cangaço. Vanja recebeu prêmios em Cannes e em outros festivais de música e cinema em vários países, sempre divulgando a cultura brasileira. Após o lançamento de seu mais novo CD, no Museu da Imagem e do Som, no dia 6 de junho, com direção e roteiro de Otávio IH e expressão corporal de Luiz Carlos Cavalcanti, Vanja parte para mais uma viagem a Cuba de Fidel, Che e Cienfuegos, como menciona sempre. Inquieta, não se afastou da dramaturgia: filmou recentemente com Nelson Pereira dos Santos, A Terceira Margem do Rio e espera no segundo semestre deste ano, a estréia de O planeta Brasil, programa na TV Manchete sobre "o Brasil do cafuné, das vitórias-régias, um Brasil que existe e resiste. Mate sua "sodade" de Vanja Orico.
I- Vanja, vamos falar um pouco da sua história. Como você se tornou uma artista?
VO - Eu sempre quis ser artista. Meu pai é o escritor Osvaldo Orico, filho de um ferreiro e de uma cabocla do Belém do Pará. E minha mãe, uma professora municipal gaúcha. Eu sou uma mistura de jacaré com cobra d'agua. Nossa vida foi difícil no começo. Meu pai foi preso em 1932, porque tomou posição contrária ao Estado Novo.
I- Como começou sua carreira?
VO - Começou com 15 anos. Meu pai trabalhava na Bélgica e eu estudava num colégio de freiras em Roma. Um dia saí com as garotas do colégio e vi o pessoal filmando nas ruas o filme Mulheres de Luzes, com roteiro de Fellini e dupla direção Fellini e Lattuada. Fiquei olhando maravilhada a atriz Julia de Marsini filmando. Eu queria ser cantora e nunca imaginei ser atriz. De repente, a Bianca Lattuada me perguntou se eu gostaria de participar do filme, fazendo o papel de uma cigana. Comme no - respondi em italiano. Meu namoradinho italiano me levou na lambreta com o violão atrás, sem capacete até a casa de Fellini, quando acompanhada do meu violão cantei Meu limão, meu limoeiro. Fui contratada, mamãe veio da Bélgica. Ficamos num bom hotel, 4 estrelas com todas as despesas pagas, filmamos durante três dias. Meu primeiro disco 78 rotações foi com a música Meu limão, meu limoeiro, gravada em Paris.
I- como você foi fazer O Cangaceiro?
VO - Para fazer O Cangaceiro, eu fiz um teste. Foi a primeira vez que encontrei Lima Barreto, que morreu pobre, mesmo tendo feito o filme mais premiado do Brasil que é O Cangaceiro. Isso é uma coisa que eu não aceito. Foi o Jorge Murad que me aconselhou a fazer o filme. Minha mãe me acompanhou porque tinha muito medo de eu perder a virgindade. Estava com 17 anos.
I- Você participou ativamente da luta contra a ditadura militar?
VO - Sim. Em 1968, durante as manifestações contra a ditadura vi pessoas morrerem ao meu lado. Não pertencia a nenhum partido político. Participei daquela passeata do Pedro Ernesto até o Caju, quando mataram o estudante Luiz Paulo. Era uma passeata tranqüila, serena e de repente soubemos que um rapaz, estudante de medicina, havia sido enterrado às pressas com o objetivo de evitar manifestações. Quando fui presa, confundida com uma estudante, o Secretário de Segurança na época, Luiz França, veio conversar comigo e disse: "- Uma moça com a sua simpatia, se meter numa passeata como essa."
I- Como foi aquela cena na Central do Brasil, quando você foi arrastada pelos cabelos por soldados da PM?
VO - Além de ser arrastada pelos cabelos, fui agredida em plena passeata, quando fui jogada ao chão. Aí peguei um lencinho branco e gritei: "Não atirem, somos todos brasileiros." Pararam com o tiroteio.
I- Você teve que sair do país?
VO - Fui obrigada a ir embora. Depois da passeata, não podia cantar, não conseguia nenhum contrato era tratada como se fosse uma leprosa. Minha própria família estava meio esquisita comigo e me perguntava: "por que você foi se meter nisso, que eu não precisava". Meu empresário que é francês - até hoje meu empresário - me mandou um contrato para cantar na Espanha de Franco. Veja só que contraste. Eu saí do Brasil onde não podia cantar Vandré, nem Chico Buarque e fui cantar em Madri. Lá cantei Chico Buarque, Vandré e até Garcia Lorca (assassinado pela ditadura franquista durante a guerra civil). O Franco estava ficando mais "bonzinho" e a Espanha já estava passando por uma fase de maior abertura. Dai fui para Paris, onde participei em 1970, da famosa Paixão Brasileira, de Geraldo Vandré, com um Cristo que tinha 2 metros de altura, um Cristo sacrificado, nu. Em cima estava escrito "Ordem e progresso" e embaixo, o esquadrão da morte. Esta paixão foi para denunciar torturas da época do governo Médici, como foi torturado o meu amigo Mário Alves, assassinado no quartel da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita no Rio de Janeiro e o meu amigo Wladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-CODI em São Paulo.
I- Como você já deixou transparecer o amor e a política sempre caminharem juntos em sua vida?
VO - É verdade. No Natal, após alguns dias de filmagens do O Cangaceiro, fui para a Itália rever meu namorado que ao chegar o encontrei numa situação muito difícil. O pai era militante do Partido Comunista Italiano e já tinha passado alguns anos na cadeia. A Democracia Cristã, na época, perseguia muito os comunistas. Meu primeiro namorado foi uma coisa muito bonita e muito platônica. Era um basco. Eu passei quatro anos na Espanha. Então esse rapaz era um lenhador. Era contra Franco e militante do ETA (Movimento Separatista Basco). Foi preso e levado para a Penitenciária Estadual de Burgos e morreu lá tuberculoso. Esse lado sentimental dos namorados cujas famílias sofreram perseguição também fizeram a minha cabeça, quem sabe? Sou uma pessoa que acredita piamente no socialismo.
I - O que te leva acreditar no socialismo?
VO - Estive em Cuba - cantei nas duas Cubas - nade Batista e na de Fidel e Che Guevara e vi como é difícil. Como Cuba é bloqueada. Mas eu creio que o valente povo cubano não vai se deixar levar pelas falsas promessas do neoliberalismo e deixar voltar aqueles cassinos que eu vi, já que nada disso dá dinheiro para o Estado.
I- Além do conto A História do Boto, quais foram os seus outros trabalhos?
VO - Escrevi muitos artigos, inclusive para o INVERTA, um artigo sobre José Marti, para revistas francesas, e um artigo sobre meu amigo Rafael Rabelo, falecido recentemente. E quero terminar até o fim do ano o meu livro O país do faz de conta.
I- Você já compôs alguma vez?
VO - Eu compus três músicas. Uma delas está num disco chamado A Cítara, o piano que me acompanha é de Antonio Carlos Jobim. A música chama-se Confissão. É uma bossa nova.
I- Como você escolhe seu repertório?
VO - Escolho sempre músicas de raízes. Esse CD, por exemplo, eu não gravava há cinco anos tem em todo o Brasil. A primeira canção é cantada em espanhol porque Geraldo Vandré compôs a música em espanhol. Tem música dos índios, dos mineiros, de Luiz Bonfá tem Manhã de carnaval, cantada em francês, porque depois do filme O Cangaceiro a música Sodade meu bem Sodade foi a gravação que eu mais vendi no mundo. O Samba de Orfeu e Manhã de Carnaval, eu vendi um milhão de cópias, para a Phillips.
I- E a música brasileira no exterior?
VO - Meu grande amigo Sérgio Porto dizia sempre: "Vanja vai, Vanja vem". Depois do sucesso de O Cangaceiro, a Colúmbia americana que ficou com o filme 20 anos, todo o dinheiro que o filme arrecadava não vinha para o Brasil. O Brasil deu o filme para a Colúmbia. O Brasil tem mania de dar as coisas. Eu percorri toda Europa cantando as músicas do, filme O Cangaceiro. Fui para a África do Norte (Argélia, Marrocos) e posteriormente Caribe. Agorao Brasil quer entregar a Amazônia. Assim não dá.
I- E agora como está sua vida profissional?
VO - O pessoal de 35 anos pra cima me conhece. Pra baixo não, porque não faço novelas, só quero fazer seriado. Me recuso a fazer novelas. Só participação especial., não consigo ficar nove meses presa à novela, eu admiro quem faz, mas prefiro viajar. Agora vou para a China. Vou cantar lá.
I- Qual a importância da música popular brasileira como fator de resistência à ditadura militar?
VO - Muito importante. Os shows como Carcará, por exemplo, de João do Vale, Zé Keti tiveram grande importância. Shows como Sérgio Ricardo fez. O Chico Buarque cujas músicas tiveram um papel também em termos de denúncias da ditadura. O Chico chegou a escrever músicas com pseudônimo. Nossa música é uma das mais ricas do mundo e se parece muito com a música cubana que é lindíssima. Sou contra uma coisa que considero muito grave, que é o modismo importado. Não que eu seja contra a música estrangeira. Adoro Beethoven, Bach e outros tipos de música. O que eu sou contra é essa coisa de mídia fabricada, que congela o pensamento do ser humano, fazendo uma espécie de lavagem cerebral.
I- Você participou do CPC (Centro Popular de Cultura da UNE)?
VO - Participei e estava lá no diado golpe. Trabalhei com Carlos Lira. Inclusive o CPC aparece no filme Os Mendigos. O Fábio Sabag também participou desse filme. Atuei com muita gente ligada ao CPC: Rui Guerra, Sérgio Ricardo, o grande Oduvaldo Viana, o Vianinha, Eduardo Coutinho e muita gente boa que não me lembro no momento.
I- Como você vê o cinema de hoje?
VO - Nos últimos três anos eu não vi nada. O Collor terminou com o cinema brasileiro, deu um pontapé na bunda de todo mundo. Agora que o cinema brasileiro está recomeçando.
I- E aí, tem gente boa?
VO - Tem gente muito talentosa. O Guarnicê é um dos festivais de cinema mais importantes no mundo. Tem curtas metragens e vídeos extraordinários. Vi garotos de 17 anos com grande talento. Os festivais do Ceará, Brasília e Gramado também são importantíssimos. O Brasil está cheio de gente com muito talento.
I- O que está faltando?
VO - Está faltando organização e patrocínio. Agora vai melhorar com a nova lei aprovada. O Estado do Espírito Santo ajuda muita gente. Minha amiga Norma Bengel após três anos de luta conseguiu com o apoio do estado capixaba apoio para filmar O Guarani. Meu filho vai fazer um filme sobre Machado de Assis, que terá a participação de atores franceses e ele pretende convidar o Miguel Falabela para fazer o segundo papel. Aliás ele nem sabe disso. Meu filho só conseguiu patrocínio depois de três anos.
I- Você vai a Cuba. Você está engajada em algum movimento de solidariedade para com o povo cubano?
VO - Estive lá em 1992 com Taiguara, Antonio Callado, Ziraldo, Frei Betto, Francisco Morais. Fui levando remédios, cantei lá para os estudantes. Vou novamente agora a Cuba. Vou fazer um checkup em Havana, porque a medicina cubana é tão boa, apesar do boicote, que dispensa maiores comentários. Vou também lançar meu CD por lá, porque tem música cantada em espanhol. Depois de Cuba tenho convites para fazer shows na China e na França.
I- Você que sempre lutou contra as injustiças, como está vendo o Brasil?
VO - É preciso lutar sempre. Lamentavelmente as pessoas aqui no Brasil continuam a ser enganadas pela mídia, deixam-se se levar pela aparência como foi o caso de Collor. Muita gente inclusive, muitos amigos meus têm memória curta. Ainda acreditam no Collor, querendo até que ele seja senador. De qualquer maneira, temos que seguir lutando. Para mim, o Brasil será um país verdadeiramente independente e livre de injustiças no dia que aparecer um Che Guevara... Lá em casa tem um poster de Che Guevara e até um gatinho de estimação cujo nome é Che. Já que eu não posso ter o Che no poder, tenho no meu colo. (risos).