Monarco: memória e voz da Velha Guarda

O que ele constrói em poesia retrata a vida e enaltece a natureza. Nascido sambista em berço de bambas, Monarco é um caso de amor à sua querida Escola de Samba, a Portela de Paulo Benjamim de Oliveira - de quem nosso entrevistado é auténtico seguidor.

I- Monarco, é esse o seu nome de batismo?

M- Não. Meu nome é Hildemar Diniz.

I- E porque Monarco?

M - Monarco é apelido de criança. É coisa de criançada. Foi em Nova Iguaçu que surgiu o apelido.

I- Você então é de Nova Iguaçu?

M- Não. Eu nasci em Cavalcanti. Fui para Nova Iguaçu com dois ou três anos de idade. Lá morei até os onze anos quando vim para Oswaldo Cruz, por ironia do destino.

I- Estava escrito!...

M– Sim, eu ouvia aqueles sambas, ouvia muito falar em Paulo da Portela, aqueles sambas que Araci de Almeida gravava; um deles recordo um trecho que dizia: - "Os professores do morro/já foram se apresentar/com o Paulo da Portela/com Nonô, com o mano Edgard” - aquelas coisas todas. O Noel Rosa tinha aquele samba que dizia: - “Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira/Oswaldo Cruz e Matriz."... Então eu já ouvia falar em Oswaldo Cruz, em Paulo da Portela...

I- E como e quando ama­dureceu o Monarco?

M- Quando eu vim para Oswaldo Cruz., seguramente! O destino me empurrou. Eu digo que tive um empurrãozinho do destino porque além de ter vindo morar em Oswaldo Cruz, vim bem para perto da Portela. Vim morar num lugar denominado Bica do Inglês, bem junto a Portela. Eu subia a Rua Taubaté, que era a rua em que eu morava, descia a ladeira e em três minu­tos estava na porta da sede.

I- Era o chamado barracão?

M- Não, no era. Era na Estrada da Portela, 412 - que ficava pertinho da minha casa. Então eu saia de casa e ia assistir aos ensaios. Eu ficava olhando, meio à distância. Então eu via o Manacéa. O Manacéa era o meu ídolo.

I- Quem eram os grandes dessa época?

M- Era o Manacéa, o Alvaiade, tinha o Alcides - o Malandro Histórico - o Ventura, o João da Gente, um time da pesada, grandes compositores. Eu estava entre os doze e treze anos, muito garoto ainda. Nem sonhava em ser parceiro deles. Foi coisa do destino. Às vezes fico pensando como as coisas puderam acontecer como acontecera. Nesse ambiente eu comecei a fazer os meus sambinhas de brincadeira até que surgiu um samba sério que eu até cantei para um rapaz chamado Demilson. já falecido.

I- Ele era compositor?

M- Não, ele era da Portela. Não era compositor mas era sambista. Conhecia bem o samba. Bem mais do que eu até. Era antigo na Portela. Quando eu cantei o samba ele se admirou: "Puxa, agora você fez um samba!” Aí eu me assustei. O samba chamava-se Retumbante Vitória.

I- Você lembra dele?

M- Sim. Mais tarde o João Nogueira gravou este samba trocando o título para Passado da Portela. Era um samba que louvava a vitória da Portela, una resposta ao Hino da Portela, do Chico Santana. Diz assim: - um dia um portelense de outrora/transbordante de alegria/proferiu em linhas de um samba comovente/que deixou muita saudade na gente, etc...

I- Aí você passou a ser considerado compositor?

M- Sim, passei a ser considerado compositor. O samba me deu um certo prestígio. Isso foi em 1952.

I- Daí data o início de sua carreira?

M- Aí eu comecei. Começaram a acreditar em mim e eu passei a andar com aqueles mais velhos que eu. Eu gostava da linha deles, daquelas melodias bonitas… Não havia essa sede de sucesso. Fazia-se o samba, ali se cantava, ali mesmo morria. Coisa pura.

I- O Alcides Histórico foi seu primeiro parceiro?

M- Foi o Alcides o primeiro num samba chamado Amor de Malandro. Depois eu descobri que o Ismael tinha um samba também com esse título mas não foi abuso de minha parte nem tentativa de plagiar o titulo do outro. Foi apenas a questão de não conhecer aquela composição. Como eu ignorava botei o titulo que convinha. O samba di­zia: "Sabe que o malandro quando ama deixa saudade". Então botei - amor de malandro - não é? Houve a coincidência e assim ficou.

I- Você não mudou o nome.

M- Não mudei. O Alcides dizia assim na primeira parte: - “Se você gostou de mim, porque quis...” (ele tinha a mania de fa­zer samba esculachando) - "...já sabia quem eu era, todo mundo diz", etc. Eu então entrei com a segunda: "você não foi meu pri­meiro amor/nem tão pouco o segundo a sentir saudade" e vai por ai. Eu procurei, como sempre faço, dar continuidade à história, ao acontecimento revelado na primeira parte...

I- Você tem um estilo bem típico por motivo até destas parcerias tão raras!

M- E daí eu fui fazendo outros sambas com o Alcides até que o Chico Santana me chamou para fazer uma segunda para uma sua música sua que se tornou bastante conhecida. O lenço: "se o teu amor/fosse um amor de verdade/eu não queria e nem podia ter maior felicidade...". Então eu botei a segunda: "seguirei a ordem do meu coração/não me fale de amor/nem tão pouco me peça perdão", etc.

I- Você sabe explicar de onde vem, você estuda, como é que você faz?

M- Eu procuro sentir o que o parceiro está falando para poder continuar em seu motivo sem fugir ao tema. No caso dessa música, que eu acabei de mostrar eu recebi a primeira e fui mernorizando e a história ficou em minha mente. Um dia eu ia andando de bicicleta por Turiaçu e me veio à cabeça: "seguirei a ordem do meu coração...", e a música foi saindo. Quando eu achei que estava certa fui correndo mostrar ao Chico. Ele então disse: "venham ouvir que coisa bonita!" Então eu cantei o samba todo e foi aquela beber-rada, aquela festa na Feira de Oswaldo Cruz.

I- Mas você fez sambas também com o Candeia, não?

M- Fiz apenas um. Eu era mais colado com os velhos.

I- E com os demais parceiros? São muitas?

M- Eu tenho mais músicas com o Alcides. Umas dez. Como Chico Santana umas cinco composições. Tenho com o Candeia, como já disse, com o Alvaiade, com o Walter Rosa, este mais novo. Com este, eu fiz um que e considerado um clássico da MPB: Tudo menos amor. E aquele que diz: "tudo oque quiseras te darei, amor...” Desta eu fiz a primeira. Aí o Walter ficou atrás de mim: “pôxa, Monarco. deixa eu botar a segunda nessa". Me pareceu que a primeira mexia com qualquer coisa da vida dele e tal. Ai eu disse: “pode botar”. O engraçado é que havia uma vendinha que eu frequentava, o armazém do Waldir, e o Walter ficava pra lá e pra cá, rodando, indo e vindo. Então eu cheguei e falei: “ô Walter, você quer falar comigo?” “Que­ro, sim. compadre. Deixa eu bo­tar a segunda nesse samba?” A primeira parte da músi­ca já era grande e eu achava quase desnecessária a segunda, mas vi nos olhos dele tamanha vontade que cedi. E saiu o que saiu. Uma segun­da muita bonita. Ai lan­çamos no terreiro da Portela.

I- E dali para o su­cesso.

M- Engraçado que esse samba todos gos­taram mas quase nada aconteceu na Portela.

Passou...

I- Veio estourar fora...

M- Sim, estourou depois. O Martinho gravou...

I- Você fazia exclusividade na Portela ou, como Paulo da Portela, era de circular?

M- Nós íamos a outros luga­res. Eu saía daqui para o Império Serrano, ia aos ensaios da Mangueira...

I - Há sempre uma forte ligação entre a Portela e o Império...

M- Claro! O Silas vinha pra cá, nós íamos pra lá, do Império vinha o Hélio - irmão de Fuleiro- o próprio Fuleiro. Aqui morava uma baiana festeira que armava uns pagodes que às vezes rodavam dois dias diretos de samba. Vinha o Molequinho, o Hélio era também meu parceiro. Havia esse intercâmbio, essa coisa de visitarmos uns aos outros em nossas escolas.

I - Você é de opinião que o ambiente nos escolas hoje está mudado?

M- A escola não é mais como era antigamente. O progresso é uma coisa difícil de explicar quando há um desvio perigoso. Muitas coisas foram esquecidas e até mesmo abolidas. O samba de terreiro que nós fazíamos e cantávamos na quadra empolgava a turma. Isso não existe mais. Se você chega lá agora com um samba, lhe proíbem de cantar. Você tem que cantar um samba enredo do ano passado, um sam­ba enredo de qualquer outra escola, é isso! Então o negócio vira um baile de carnaval, com aquela barulhara ensurdecedora. Parece mais um reveillon do que um terreiro de samba. Eu não consi­go me aclimatar a essa barulheira, esse pula-pula. Eu acho que o progresso que a gente não pode segurar traz essas mudanças que acabam com o samba de terreiro que é a nossa própria história. São coisas que cantamos e que saem do nosso coração e isso hoje o “progresso” proibiu.

I- Você não acha que o samba de terreiro pode voltar um dia?

M- Até pode voltar mas, como o Manacéa falou, é difícil. Na Portela, por exemplo, vai haver um festival de samba de terreiro ainda este ano.

I- Este progresso a que você se referiu e as mudanças que afastaram os compositores da quadra é que foram responsáveis pela inclusão da marcha como samba-enredo. Por isso não se vê mais sambas como “Sublime Pergaminho”.

M- É difícil hoje ver-se numa escola um samba autêntico, mas a escola que faz um samba com uma linha tradicional ainda entra na passarela, vibra e derruba essas marchinhas todas.

I- Mas é difícil!

M- Mas derruba! A Portela este ano fez um samba dentro da linha tradicional e foi aquela briga. Foi campeã na boca do povo. A Vila Isabel também com aquele samba do Zumbi, um samba bonito...

I- Você é um compositor de posição em defesa do samba autêntico, um homem de muitas histórias e até alguns falam que você é aquele que mais guarda em memória o passado da Portela. Você se consideraria o sucessor de seu parceiro Alcides?

M- Não. O Alcides sabia muito mais do que eu, viveu uma época que não vivi mas o que sei aprendi com ele. com a convivência que tive com ele. Digo o pouco que sei comparado a ele. A Portela tem uma história bonita. O Paulo passou para o Alcides. O Alcides passou para mim, eu passei para o meu filho, o Osmar passa para o seu filho, é assim. Eu me lembro bem que ficava junto do Alcides escutando ele cantar. E eu perguntava: “Alcides, de quem é este samba?” Ele: "é do Paulo". E eu: “Puxa, que samha bonito! Canta outra vez para eu aprender. “E ele canta­va. Assim aprendi muita coisa. Depois de sua morte eu consigo lembrar de muita coisa que ele me passou, coisas como as histórias que eram muitas sobre a sua vida. Eu atentava muito para isso. Quando nós fomos fazer o disco A Velha Guarda Homenageia Paulo - e isso eu digo sem vaidade al­guma - se não fosse a minha memória esse disco não ia perceber muita coisa boa do Paulo porque o Manacéa não lembra. O Casquinha também não. Ninguém lembra. Eu, através do Alcides é que guardei essas coisas, como esse samba do Paulo: “para que haveremos de mentir/o subúrbio está é bom/venham ver, não é história/se porventura estou errado/dou a mão à palmatória".

I- Mas vocês da Velha Guarda estão aí com muitos tesouros e tudo começou lá no Paulo.

M- A Velha Guarda é assim dita pela própria boca do povo que costumava chamar assim os mais antigos. Eu lembro que na leiteria do seu João ficava o Caetano cantando, o João da Gente, aquele cavaquinho bem tocado, aquela viola, o pandeiro marcando. A Portela sempre teve a sua Velha Guarda mas foi a partir de 1950 que nos agrupamos através do disco, que o Paulinho produziu na RGE. Ai gravou o Manacéa. tem sam­ba meu, do Alberto Lonato, o Alcides cantando, o João da Gente que era uma bela voz, o Ventura que também tinha uma voz melodiosa, eram os três as vozes de ouro da Portela: - Ventura, Alcides e João da Gente. Então quando o Paulinho, com o seu olho clínico, produziu o disco, foi chamar o pessoal para cantar. Ele não chamou um cantor profissional e então através desse disco é que temos a oportunidade de ouvir os próprios compositores cantando suas músicas como originalmente sempre ouvíamos lá em Oswaldo Cruz.

I- E ninguém melhor que o próprio autor para interpretar as suas composições - e também nada mais bonito!

M- E assim começamos a ser solicitado. Todos querem nos ver e ouvir. Tudo isso deve­mos ao Paulinho da Viola que aliás tem uma delicadeza enorme no trato com a gente Ele mesmo diz: “Olha, vocês se cuidem, só tem vocês segurando isso aí! Acabou, acabou tudo! “ E em 1977, fizemos o primeiro show no Teatro João Caetano. Em 1984, fomos a Roma e já fizemos quatro LP’s depois desse disco do Paulinho de 1970 e agora estamos completando 25 anos e tivemos a festa na Sala Funarte que foram duas semanas de casa cheia, com ingressos esgotados. Creio que assim vamos mantendo acesa a chama do samba verdadeiro com seus amigos e seus defensores como Cristina e Paulinho da Viola. Estamos aí, como dizia um saudoso jornalista, amigo nosso, o Juarez Barroso Ele nos chamava Os Sacerdotes do Samba de Oswaldo Cruz. É como diz o hino da Velha Guarda: "Estamos velhos, mas ainda não morremos".


Entrevista publicada no Jornal INVERTA nº 55 em julho de 1995