Uma revisita à Ditadura de 1964

Quando é dado o golpe em 1964, a repressão soube intervir num ponto nevrálgico: os sindicatos dos trabalhadores. Líderes mais politizados e mobilizadores das categorias foram expulsos ou desaparecidos pela truculência ostensiva ou advertida, alijados das direções das agremiações pelas quais foram eleitos com legitimidade.

Um período merecedor de atenção no desenvolvimento do capitalismo brasileiro foi o “Milagre”. Ocorreu entre 1967 e 1973. Foi em plena ditadura, reconhecido como os anos de chumbo em razão da violência praticada pela repressão, acompanhada por ferocidade psicótica e paranoica até entre seus algozes da caserna e apoiadores do meio civil. Nesses 6 anos, o crescimento econômico alcançou o auge com marcas nunca vistas até então por nenhum país do mundo. O PIB cresceu em média 11,12% ao ano. O ano de menor expansão foi 1969 com 9,39% e o de maior em 1973 riscou espantosos 13,94%.

O que pouco se divulga e demonstra com clareza é como este resultado fantástico foi obtido. É preciso expor o estratagema, urdido a partir de determinados componentes pontuais que permitiram o sucesso econômico. Esta é a finalidade desse breve escrito ao procurar expor uma das causas relevantes dessa equação social.

O preço é uma peça fundamental nesse entendimento. Tudo o que se produz tem um preço pois pode ser comprado e vendido. Assim é o universo das mercadorias. E destas a mais importante de todas é a capacidade de trabalho que se vende mediante troca por um salário mensal. O preço dos trabalhadores é o seu salário. E ele é tanto mais importante por formar o custo de produção pois no outro segmento desse vetor está o lucro que remunera o capital.

Se o custo de produção puder ser espremido, até o limite do possível e aceitável humanamente, vai sobrar para o lucro. E é esse lucro que será investido para aumentar a produção, ampliando o capital. O entendimento básico é simples assim. Não existe um milagre propriamente dito. Todas as realizações econômicas grandes ou pequenas possuem uma origem em algum lugar da sociedade. Caso não fosse dessa maneira, as coisas poderiam ser inventadas a partir do nada como mero truque de mágica. E simplesmente porque os militares, aureolados com uma mística de organização e uma imagem de ficcional patriotismo, constituiriam a razão fundamental de progresso no período em que governaram.

Quando é dado o golpe em 1964, a repressão soube intervir num ponto nevrálgico: os sindicatos dos trabalhadores. Líderes mais politizados e mobilizadores das categorias foram expulsos ou desaparecidos pela truculência ostensiva ou advertida, alijados das direções das agremiações pelas quais foram eleitos com legitimidade. No lugar, foram nomeados pelegos, os carneiros com os quais a ditadura podia contar. Este ataque ao universo sindical permitiu controlar a variável salário. Não haveria mais negociação salarial, porém imposição de cima para baixo dos índices de reajuste diante da inflação.

Houve um decreto lei para regulamentar tais procedimentos escusos. Foi o de número 4725, sancionado em 13 de julho de 1965. Ele rezava sobre o critério a ser seguido como reajuste salarial. Sua elaboração se deve ao ilustre economista Mario Henrique Simonsen, excelsa sapiência matemática a serviço da redução do padrão de vida dos trabalhadores em benefício da produtividade do capital. Propunha o doutoral desiderato que o reajuste dar-se-ia pelo cálculo estimativo de três elementos: o salário real médio dos últimos 24 meses anteriores ao último acordo; um adicional de produtividade; e uma expectativa da inflação esperada.

Com a adoção desse parâmetro, o reajuste saía defasado em virtude do tempo excessivamente longo de cálculo, retroativo a 24 meses atrás; a produtividade que era imposta por ser conveniente ao conjunto do grande capital; e a inflação esperada que era pré-determinada para ser propositadamente aceita como sendo menor que a do presente.

O resultado dessa santíssima fórmula foi terminante arrocho salarial, experimentado pelos trabalhadores de rendimento mais baixo, a maioria da classe trabalhadora brasileira que ganhava menos, igual ou pouco acima de 1 salário mínimo. O efeito já se fez sentir no primeiro ano de vigência do dito decreto. E foi reconhecido pelo próprio Mario Henrique Simonsen décadas depois em publicação na revista Conjuntura Econômica, editada pela Fundação Getúlio Vargas onde esse cidadão trabalhou como professor emérito até os últimos anos de vida com saúde.

Com isto, a reprodução existencial dos trabalhadores ficava mais barata para os capitalistas. Poderiam oferecer muito mais empregos com a benesse dos salários reprimidos. Se antes do golpe de 1964, um pai de família poderia trabalhar e sustentar sua prole a partir de seus rendimentos, agora trabalharia ele, a mulher e os filhos. De fato, o Milagre Brasileiro geraria muitos empregos, em verdade vos digo, pelo sacrifício dos próprios trabalhadores assalariados. Pois assim se desvenda o mistério do couro sair a correia. Quanto aos trabalhadores de nível intermediário na estrutura produtiva, ocupantes de cargos gerenciais, de comando mais estratégico nas empresas, como engenheiros, chefes, supervisores e outros de tal sorte, um segmento dito como classe média ou pequena burguesia, sempre estreitíssimo no país, mas prontos a agirem como capatazes impiedosos de seus senhores, estes receberiam salários com gratificações e remunerações acima da inflação, porém gerados pela base salarial reprimida da maioria dos trabalhadores. Eram os letrados, diplomados, aproveitando-se consciente ou inconscientemente das graças da ditadura de chicote em punho. Hoje estes podem alimentar saudades e suspiros dos tempos da truculência. O chicote não desceu sobre eles.

Nessa época do Milagre Brasileiro, o indicador oficial de inflação era o Índice Geral de Preços (IGP). Sua metodologia de aferição se compunha de 60% de preços no atacado, 30% de preços ao consumidor e 10% de preços da construção civil. Foi idealizado lá em meados dos anos 40 muito mais para compreender a inflação que cercava as empresas que compram no atacado do que para espelhar as aflições do trabalho da classe trabalhadora, em especial os mais pobres. Trata-se de indicador válido também, porém bem mais ajustado ao capital em suas vicissitudes do que ao trabalho em suas circunstâncias. Somente quase vinte anos depois, em fins dos anos 50, foi configurado o Índice de Custo de Vida (ICV), direcionado para estimar as necessidades dos trabalhadores que compram sua subsistência no varejo.

Quando se abre o contraste entre Salário Mínimo e ICV pelo critério de pontos base (pb) no período pós-64 até 1974, no propósito de verificar perdas e ganhos e por consequência saber qual o valor real de aquisição de uma nota de 100 cruzeiros no decorrer de 10 anos, chegou-se ao seguinte quadro estatístico:

 QUADRO – SALÁRIO MÍNIMO x CUSTO DE VIDA x PERDA x VALOR REAL

FONTE: www.portalbrasil.net.

Dados: Salário Mínimo e ICV

Elaboração do Autor

No ano de 1965, ainda houve um ganho de 2,13%, quem sabe um pirulito da ditadura aos trabalhadores, porém, dali em diante, as perdas acumuladas somente cresceram. Em 1974, a perda acumulada alcançou 41,15%. Uma nota de 100 cruzeiros valeria apenas 58,85 cruzeiros de poder de compra efetivo.

Foi com corte de salários que também se arrefeceu a inflação e mesmo assim o salário mínimo, base de toda a sociedade, foi corroído acintosamente em termos reais e sem qualquer apelação. Mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo.

O famigerado Milagre Brasileiro foi assim soerguido. Não foi dádiva magnânima dos céus que subitamente cai sobre os homens. Poder-se-ia examinar também outras variáveis econômicas de peso, mas com somente esta já é possível ter noção do que enfrentaram os trabalhadores no cotidiano desses anos tenebrosos neste exíguo espaço demonstrativo.

 

José da Silveira Filho - PR