Em sigilo, ALCA poderá radicalizar medidas neoliberais (primeira parte)
Em sigilo, ALCA poderá radicalizar medidas neoliberais (primeira parte)
Por: Marco Aurélio Weissheimer
A ausência
de um debate público no Brasil em torno da criação
da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) é
escandalosa. Caso seja aprovado, este acordo terá repercussões
decisivas na economia nacional e na vida de todos os cidadãos.
No entanto, as discussões estão sendo conduzidas de
maneira sigilosa, longe dos olhos e dos ouvidos da sociedade.
Os textos preliminares que servirão de base para o estabelecimento de novas regras para o comércio nas Américas prevêem uma desregulamentação da economia jamais vista e um conseqüente enfraquecimento da capacidade de intervenção dos estados nacionais nos mercados. Impulsionado pelos Estados Unidos, o projeto da ALCA pretende eliminar todo e qualquer obstáculo à liberalização do comércio.
Entre estes obstáculos, leis de proteção a direitos sociais, trabalhistas e ambientais. Os serviços públicos também estão na mira dos negociadores.
Documento
de ativista canadense descreve ameaças em detalhe
A
ALCA pretende ser o acordo comercial de maior alcance na história,
reunindo 34 países das Américas. Somente Cuba está
de fora. Embora
fundamente-se no modelo do Acordo de Livre Comércio da América
do Norte (NAFTA), vai mais longe no seu âmbito e poder. Através
da ALCA, os Estados Unidos pretendem introduzir no Hemisfério
Ocidental todas as regras do Acordo Geral sobre Comércio de
Serviços (GATS), proposto pela Organização
Mundial do Comércio (OMC).
Isso
significa uma desregulamentação maciça da
economia e uma sensível diminuição do poder de
intervenção dos estados nacionais nos mercados. Os
efeitos perversos deste projeto são analisados detalhadamente
em um estudo intitulado “A ALCA e a ameaça aos programas
sociais, ambientais e à Justiça Social
nas Américas”, escrito pela canadense Maude
Barlow, presidente do Conselho de Cidadãos Canadenses e
diretora do Fórum
Internacional sobre Globalização.
Barlow participou do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, onde lançou um alerta sobre a ameaça que o projeto da ALCA representa para a construção de um modelo de desenvolvimento socialmente justo nas Américas.
Estudo
prevê “livre” comércio em todo o setor
de serviços
Em
seu estudo, Barlow fornece uma radiografia do projeto da ALCA,
relacionando-o com outros acordos atualmente em discussão (e
implementação) no mundo. Um dos mais importantes é
o GATS, em fase de negociação em Genebra, que pretende
liberalizar o comércio global de serviços, incluindo aí
todos os programas públicos, e eliminar gradualmente todos os
possíveis obstáculos interpostos por governos nacionais
à competição internacional no setor dos
serviços.
O Comitê
de Negociações Comerciais da ALCA propõe um
acordo de serviços semelhante, e até mais ampliado,
para o pacto das Américas.
Propõe também
manter, e mesmo alargar, as normas do NAFTA, que concedem às
empresas direitos sem precedentes para defender seus interesse
comerciais por meio de
tribunais legalmente obrigatórios.
Segundo a análise de Barlow, “a combinação
destes dois poderes em um acordo único proporcionará
novos e inigualáveis direitos às empresas
transnacionais do hemisfério para competirem com todos os
serviços públicos, incluindo assistência médica,
educação, segurança social, cultura e proteção
do meio ambiente”. Ou seja, estabelece as condições
para uma privatização destes serviços, em um
nível jamais visto.
Sociedade
civil excluída;
plebiscito pode
ser alternativa
Ao
se ler o estudo da canadense, não é difícil
constatar as graves conseqüências que a proposta da ALCA
pode ter para os países latino-americanos. Ela estabelece
condições sobre políticas de concorrência,
contratos públicos, acesso ao mercado e resolução
de disputas que, juntas com a inclusão de serviços e
investimento, podem retirar de todos os governos a capacidade de
criar ou manter leis, normas e regulamentos para proteger a saúde,
a segurança e o bem-estar dos cidadãos e do meio
ambiente que partilham.
A
exemplo do que ocorreu em acordos comerciais anteriores, como aqueles
firmados pelo NAFTA e pela OMC, este
acordo de livre comércio para as Américas não
contempla salvaguardas em seu texto para proteger trabalhadores,
direitos humanos, segurança social nem normas de saúde
e ambientais.
Maude Barlow observa que, mais uma vez a sociedade
civil e a maioria dos cidadãos que desejam uma espécie
diferente de acordo comercial foram excluídos das negociações
e serão impedidos de participar nas deliberações
na cidade de Quebec em abril de 2001. Todavia, acrescenta a
canadense, para os povos das Américas os riscos nunca foram
tão elevados.
No
Brasil, já há um projeto em tramitação no
Congresso Nacional, elaborado pelo deputado Hen-rique Fontana
(PT/RS), propondo a realização de um plebiscito para
decidir a participação do Brasil na ALCA.
Seria uma forma de romper o véu de segredo que vem encobrindo
as negociações atualmente em curso.
Primeiro
passo é promover
ampla informação
O primeiro passo para iniciar um debate público sobre o tema é esclarecer a natureza deste projeto. A Área de Livre Comércio das Américas é o nome dado ao processo de expansão do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) a todos os restantes países do Hemisfério Ocidental, exceto Cuba.
Com uma população de 800 milhões e um PIB aproximado de US$ 11 trilhões, a ALCA seria a maior zona de livre comércio do mundo. Ou seja, a ALCA pode se tornar o acordo de livre comércio de maior alcance no mundo, com um âmbito que penetrará em todos os aspectos da vida dos cidadãos das Américas. Mas, ao contrário do projeto da União Européia, a ALCA é sobretudo uma proposta de integração comercial. De desregulamen-tação comercial, seria melhor dizer.
O
projeto de integração foi lançado pelos líderes
de 34 países da América do Norte, Central e do Sul e do
Caribe durante a Cúpula
das Américas em Miami, Flórida, em dezembro de 1994.
Durante esse encontro, o então presidente Bill Clinton se
comprometeu a realizar o sonho do anterior presidente George Bush de
um acordo de livre comércio que se estendesse desde Anchorage
até Tierra del Fuego, unisse as economias do hemisfério,
aumentasse a integração social e política entre
os países e se baseasse no mesmo modelo de livre comércio
que o NAFTA.
Texto prevê poder inédito para multinacionais...
O
estudo de Maude Barlow mostra como, desde o início, as grandes
empresas, suas associações e grupos de pressão
têm uma
participação privilegiada no processo de negociação
do acordo. Nos Estados Unidos, diversos comitês empresariais
aconselham os negociadores americanos e, segundo o sistema do Comitê
Consultivo Comercial, mais de 500 representantes empresariais têm
permissão de segurança e acesso a documentos de
negociação da ALCA.
Uma das principais tarefas dos
negociadores é comparar e consolidar os componentes principais
de diversos acordos comerciais e de investimento por todo continente
americano. Já foram assinados diversos Tratados de
Investimento Bilateral (TIB) entre países individuais,
baseados no modelo do NAFTA, em que as empresas podem processar
diretamente os governos por pretensas violações dos
direitos de propriedade.
...
enquanto limita ao máximo ação dos governos e sociedades
A
partir da experiência do NAFTA, os Estados Unidos querem
estender para todo o continente medidas para liberalizar o
investimento estrangeiro e conceder aos investidores estrangeiros
direitos de tratamento (não discrimina-tório) nacional.
Ambos proíbem, por exemplo, requisitos de desempenho pelos
quais os investidores estrangeiros têm a obrigação
de melhorar a economia local e apoiar os trabalhadores. Ambos os
projetos se fundamentam em um modelo de liberalização
do comércio e investimento introduzidos na América
Latina pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional
(FMI).
O trabalho de Maude Barlow relata como, através da aplicação destes programas, a maioria dos países em desenvolvimento foram levados a abandonar a indústria doméstica em favor de interesses empresariais transnacionais; a converter os melhores terrenos agrícolas visando a exportação de culturas para liquidação da dívida nacional; a reduzir as despesas públicas em programas sociais e a abandonar a assistência médica universal, a educação e os programas de previdência social; a liberalizar os setores da eletricidade, transportes, energia e recursos naturais; e a remover obstáculos regulamentares ao investimento estrangeiro.