Che, a morte, a traição e a verdade histórica
Che, a morte, a traição e a verdade histórica
Historiador
O
cinema pode se tornar um importante instrumento de investigação
histórica, aliás, nos seus primórdios, a nova
invenção era vista basicamente como meio para a
pesquisa científica.
Alguns anos após o aparecimento do cinematógrafo, um autor polonês escreve um livro intitulado "Uma nova fonte de história", onde acredita que o estudo da história estava para ser radicalmente alterado com a possibilidade da preservação de imagens que simulam o movimento real.
Dois jovens cineastas suecos, Erik Gandini e Tarik Saleh, realizaram com o filme "Sacrifício", exibido no Rio e em São Paulo, no 6º Festival Internacional de Documentários “É tudo verdade”, não apenas esta missão de preservação da memória que parecia tão inovadora para os pioneiros do cinema: mas também um interessante exercício de investigação histórica.
Eles partem da hipótese de que a história da prisão de Ciro Bustos, artista plástico e contato de Che com os revolucionários argentinos, e de Regis Debray, francês que acompanha os primeiros momentos da revolução cubana e escreve um livro intitulado "A revolução na revolução", que teorizava sobre a importância estratégica da luta guerrilheira, está mal contada. Tanto Bustos como Debrey participaram do episódio que levou à derrota do guerrilheiros liderados por Che Guevara na Bolívia, em 1967. A derrota leva à morte boa parte dos revolucionários e de seu líder, assassinado depois de feito prisioneiro.
Os
dois cineastas desconfiam da versão divulgada pelo historiador
Pierre Kalfon, amigo de Debray, que atribui a Ciro Bustos
a responsabilidade de ter revelado à polícia
informações que levaram à localização
dos guerrilheiros. Kalfon
se baseia, particularmente, nos desenhos que Bustos fez dos
revolucionários para enfatizar a alegada delação.
Debray e Bustos foram presos uma semana antes da morte de Che,
ocorrida em 8 de outubro de 1967 e permaneceram presos até
1971. Se atribui à
prisão dos dois a descoberta de informações
que permitiram localizar os guerrilheiros.
Na ocasião, Debray é citado como tendo passado informações relevantes, mas é paulatinamente reabilitado, mantendo-se ainda articulado a setores de esquerda e chegando a ser conselheiro para assuntos internacionais do governo de François Miterrand, na França. Ciro Bustos, por seu lado, recebe apenas a parcialidade de historiadores que leram “partes” de livros para tachá-lo como traidor e vive, hoje, em Malmo, na Suécia, ocupando como aposentado “o posto mais baixo na escala econômica”, como ele afirma em entrevista à Folha de São Paulo.
Além
de ouvir os dois protagonistas, o filme constrói um amplo
quadro da questão, procurando registrar as versões dos
agentes da CIA, dos membros do aparato repressivo boliviano e
de parentes de Camba, um
outro guerrilheiro acusado de traição.
Na verdade, Regis Debray é pouco ouvido, não por falta de insistência dos entrevistadores, mas porque se mostra reticente e revela não ter nenhum interesse em esclarecer as dúvidas que estão sendo colocadas. Bustos rompe o silêncio, e diz que sua atitude de parecer estúpido e o fato de ter desenhado retratos de guerrilheiros, onde ele incluía figuras fictícias, visava proteger a rede local de apoio à guerrilha.
O filme registra bem a trajetória de ambos: Debray é localizado num castelo onde deveria pronunciar uma conferência, Bustos está no seu exílio, na Suécia, e vive num meio onde Che continua sendo uma referência. Numa seqüência, em que dois jovens gravam o desenho do revolucionário com a estrela na boina, os entrevistadores perguntam porque eles não cortaram a estrela, ao que um deles responde: “a estrela é o que associa Che ao comunismo, e consideramos isso importante”.
Esta
abertura da questão não deve ser vista, como a imprensa
burguesa já se apressa em querer apresentar o problema, a
partir do prisma “a revelação do verdadeiro
traidor”, que seria agora Regis Debray. O filme serve mais
de alerta contra versões apressadas e comprometidas com os
interesses das classes dominantes, que patrocinam interpretações
mais adequadas à manutenção da sua dominação
de classe.
Em 1967, mais do que mostrar o grande esforço do imperialismo em esmagar a luta dos revolucionários em todo o mundo, os meios de comunicação ressaltavam o papel dos traidores, inventados ou de fato. Não nos contentarmos com estas versões parciais e enganosas é uma postura verdadeiramente científica. Façamos isso com o cinema, como os jovens suecos, ou com os meios que tenhamos à mão.