Apontamentos para um Estudo da Produção de Software e a Perspectiva do Software Livre como Embrião de uma Produção Socialista
“Não há patente. Você patentearia o sol?”
Jonas Salk – inventor da vacina da Pólio, ao ser indagado se a patentearia em entrevista em abril de 1951 1
I - Introdução
“A necessidade só é cega enquanto não é compreendida. A liberdade é a consciência da necessidade”. (Engels no Anti-Dühring explicando frase de Hegel)
A discussão acerca das “novas tecnologias” e da “revolução informacional” tem sido homogeneizada a partir de um ponto de vista pós-moderno. Mesmo o discurso libertário do movimento do software livre, à esquerda no debate contra o conservadorismo bancado pela maioria dos grandes monopólios, se ressente de estudos materialistas que enxerguem este momento como um desdobramento do desenvolvimento capitalista.
Predomina, neste campo, o conceito de liberdade idealista. A liberdade do código e não das pessoas, a definição apenas técnica em que o regime de trabalho a que elas estão submetidas para produzir um software não importa.
Software Livre são os programas de computador licenciados de forma que o acesso ao código fonte dos mesmos e sua livre distribuição estejam assegurados. Dentro do movimento, consensualmente, as quatro liberdades que definem tecnicamente se um software é ou não livre são as enunciadas pela Free Software Foundation:
“0 - A liberdade de rodar o programa para qualquer propósito;
1 - A liberdade de estudar como funciona o programa e adaptá-lo às suas necessidades;
2 - A liberdade de redistribuir cópias de forma que você possa ajudar seu vizinho.
3 - A liberdade de melhorar o programa e de publicar suas melhorias para o público de forma que toda a comunidade se beneficie. ”2
Aos que identificam liberdade a tal definição técnica, em muitos casos, a utilização do software livre consiste em uma mudança no modelo de negócios, utilizá-lo é uma “sacada” de empreendedorismo, oportunidades novas, que, ao serem aproveitadas, levam à extinção outros concorrentes, num mercado auto-regulado por leis místicas. Para estes, tanto faz se o programa é desenvolvido por trabalhadores que vendem sua força de trabalho às grandes empresas ou por trabalhadores organizados da posse dos meios de produção. O que importa é que sua produção siga as três liberdades. Elas, em si, são um amuleto poderoso o suficiente para garantir a mudança na sociedade, afinal: “O capitalismo vai atrás da eficiência e o software livre é eficiente. Na economia em rede colaborar é mais eficiente que competir.” 3
Porém, se furarmos o véu do discurso da “Revolução Cibernética”, ou da “Economia em Rede”, descobriremos todo um mundo de exploração, de propaganda, de consumismo, de lesões de esforço repetitivo, de alto estresse, enfim, de torturas do trabalho:
“Pois afinal, software livre é apenas metáfora: software em si não pode ser nem livre nem aprisionado, nem mesmo em face aos próprios interesses (software em si não tem interesse, só instruções); pessoas que dele dependem é que podem.”. 4
A luta pelo software livre, se não conjugada à luta contra o modo capitalista de produção, é ineficaz no sentido da libertação humana. Tal atividade da sociedade, a produção de softwares, está emaranhada com o sistema como um todo. Primeiramente, é determinada pelo modo de produção e também o sobredetermina. Qual a diferença entre a essência do negócio dos softwares e a do negócio dos transgênicos, por exemplo, onde grandes monopólios, ao controlarem patentes sobre o código genético da variante desenvolvida, controlam todo o mercado de sementes?
Sem a visão do bosque, olhando-se apenas uma árvore, o movimento do software livre pode ser seduzido por uma bandeira reacionária que amenize as contradições, sem resolvê-las. É como o caso do movimento sem-terra quando sua reivindicação predominante torna-se o modelo de divisão da terra em pequenas propriedades, que depois são reabsorvidas pelos latifúndios.
Para avançar-se nessa luta, é necessário um intenso combate ideológico que desmascare as falsidades repetidas ad nausea pelos aparelhos ideológicos da burguesia. O presente artigo apenas tem a pretensão de apontar alguns eixos sobre os quais um estudo dessa natureza deverá orbitar.
II – O método
De início, este estudo deve necessariamente “limpar o terreno” e posicionar-se claramente sobre o sistema em que vivemos. A única interpretação que assume o caráter contraditório da sociedade e o entende como o movimento das forças materiais que, em última instância, determinam os demais aspectos sociais, dentro de um contexto de múltiplas determinações, é o materialismo histórico, ou marxismo-leninismo.
Este método dá conta da história de como as necessidades materiais da vida humana (alimentar-se, abrigar-se, etc.) foram gerando outras necessidades na medida em que, com o desenvolvimento de suas relações com a natureza, os seres humanos estabeleciam determinadas relações entre si, relações sociais de produção, as quais, desde a Revolução Neolítica e o surgimento de um excedente na produção, se tornaram relações sociais de exploração, com a divisão da sociedade em classes. Não é este o espaço de expor as bases do socialismo científico, que já estão bastante debatidas nas obras clássicas.
II - O Sistema e a Revolução Industrial
1 - O modo de produção capitalista:
Um primeiro passo para uma investigação mais profunda sobre o tema é a caracterização do pano de fundo do problema, a formação social em que vivemos. Caberá aprofundar a descrição do modo de produção capitalista, que foi a forma que as relações de produção assumiram há alguns séculos e que ainda é o modo de produção predominante na atual formação social.
Nos últimos tempos, ocorreram transformações dentro do sistema reforçando-o sobremaneira. De outra natureza são as transformações empreendidas nas sociedades onde triunfou uma Revolução Socialista, sem descartar as vezes em que houve revezes e retrocessos. O século XXI desponta com a mesma problemática que marcou o século XX: a luta, muitas vezes assimétrica, entre esses dois sistemas mundiais, o capitalista e o socialista.
O modo de produção capitalista é o modo de produção de mercadorias. Isso não significa que as mercadorias não existiram em formações sociais anteriores à hegemonia do capital. Apenas que, nos modos de produção pretéritos, mesmo existindo o mercado, a produção da sociedade não se dava majoritariamente de forma a ter seu produto realizado por ele [pelo capital], e sim pelo consumo da sociedade.
As mercadorias são produtos do trabalho humano, produzidas com o intuito não de serem consumidas, mas de serem comercializadas. O primeiro e mais conhecido capítulo de O Capital é destinado a definir esta célula básica do sistema que, enquanto produto do trabalho humano, encerra uma dupla natureza, ser valor de uso (ter uma utilidade) e também valor de troca (ter um valor de troca definido pelo trabalho social nele contido).
No capitalismo, a própria força de trabalho se torna uma mercadoria, através do trabalho assalariado, onde o proletário vende seu tempo de trabalho, recebendo, em troca, um valor menor do que o produzido neste período. Esta diferença é a mais-valia, produto social que o burguês se apropria privadamente.
O trabalho assalariado, hoje, se expande na sociedade de acordo com o movimento incessante de concentração de propriedade. Profissões que antes eram exercidas por “profissionais liberais”, pequeno burgueses proprietários dos meios de produção necessários ao exercício de suas atividades, foram cada vez mais sendo incorporadas pelo regime assalariado de escravidão. No manifesto, Marx fala sobre a Revolução Burguesa, que:
“Fez da dignidade pessoal um simples valor de
troca; substituiu as liberdades tão afetuosamente conquistadas por
uma liberdade única e impiedosa: a liberdade do comércio. Numa
palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e
políticas, estabeleceu uma exploração, descarada, direta e
brutal.”
“A burguesia despojou da sua auréola todas as
atividades que até ai passavam por veneráveis e dignas de piedoso
respeito. Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o sábio
em assalariados ao seu serviço.” 5
Muitos destes profissionais, principalmente os de trabalho intelectual, até recentemente, não tinham necessariamente grandes gastos com máquinas, nem matéria-prima (que juntos conformam o capital constante), afinal, seus instrumentos de trabalho eram: lápis, pranchetas, tintas, máquinas de escrever, máquinas fotográficas, bisturis, etc.; com os quais faziam projetos arquitetônicos, textos noticiosos, cirurgias, fotografias, etc. Agora, necessitavam de computadores de alta performance, servidores, aparelhos de raio x, impressoras plotter, entre outros meios de produção.
Pode-se argumentar que a chamada “Revolução Informacional”, ao massificar e reduzir o preço de computadores, por meio da mecanização da produção dos mesmos (alta composição orgânica), favorece o ressurgimento de pequenos proprietários. Isso porque, apesar da aquisição de muitos meios de produção ter se tornado inviável (compare o estetoscópio de um médico de algumas décadas atrás, com um tomógrafo usado hoje), outras se tornaram mais acessíveis (compare uma ilha de edição com um computador equipado com os softwares necessários). Porém, essa conclusão é ilusória, pois, quando observamos como se reparte a mais-valia, fica claro como se dá a exploração. O jornalista free-lancer, dono de sua máquina, é explorado pela Agência de Notícias; o médico que tem seu consultório, pela “Companhia de Seguro”. É o mesmo caso de trabalhadores manuais, como aqueles que trabalham em domicílio para confecções, recebendo seu salário por peça. E também é este o caso dos cientistas que trabalham produzindo softwares. Todos são produtores de mais-valia para o patrão.
2- A terceira fase da Revolução Industrial
A Revolução Industrial foi a aplicação da ciência, sistematicamente, ao processo produtivo. A simbiose entre a necessidade de se resolverem os problemas práticos da produção e a investigação acadêmica levou a um período de profunda transformação nas relações entre os homens e a natureza.
A fábrica é a grande inovação desta Revolução. Uma fábrica é um conjunto de máquinas e trabalhadores organizados em uma produção social. Conforme Marx descreve no Capital, a máquina é constituída de três elementos: seu motor, sua máquina ferramenta e seus mecanismos de transmissão.
Ainda durante o reinado das manufaturas, no início do domínio burguês, a máquina ferramenta foi alvo das grandes transformações que caracterizaram o primeiro período dessa Revolução. Facas, martelos, cunhas, alavancas, agulhas, pás, cresceram em variedade e qualidade. Com a necessidade da formação técnica para se exercer estes ofícios, existia espaço para uma resistência do artesão, ainda detentor de seus meios de produção.
Essa resistência, porém, é quebrada com a expansão do sistema e a mudança na correlação da luta de classes que resultou do salto tecnológico seguinte. A segunda fase da Revolução Industrial traz a utilização da energia de um motor mecânico, em substituição a energia dos homens e dos animais. O “grande autômato” agora impõe o ritmo e os trabalhadores parecem converter-se em apêndices da máquina.
A Lei Geral da Acumulação Capitalista tem muitos desdobramentos, um deles é que, quanto mais se desenvolvem as forças produtivas, mais produtivo um trabalhador se torna, o que permite ao burguês dispensar mão de obra, engrossando o exército de reserva da sociedade.
Já a terceira fase6, coincide com o que o discurso pós-moderno chamado de “revolução digital”, a transformação rápida dos sistemas de transmissão, que servem ao controle das máquinas.
Os computadores são o objeto principal da revolução nos meios de transmissão e controle. Os sistemas computacionais podem ser basicamente divididos em duas partes: a parte física conhecida como hardware (do inglês hard: duro) e a parte dos programas conhecida como software (do inglês soft: suave).
Quando foram criados os computadores, a primeira forma de alterar o controle do processamento de informações dos mesmos era através da mudança na ligação entre os hardwares (trocavam-se cabos de lugar). Porém, com a evolução dos computadores, surgiu o conceito de que os programas poderiam estar armazenados na memória do computador.7
Os programas de computador contêm as rotinas que devem ser executadas pelo processador, gerando os estados projetados pelo desenvolvedor e realizando alguma função para o usuário, como mover uma máquina, por exemplo.
Ou seja, eles são bens culturais, aplicações práticas da ciência, bem próprias do tipo de ciência que se desenvolveu a partir da Revolução Industrial. São compostos de instruções lógicas, mas também de algoritmos matemáticos, de trabalhos artísticos (sons, imagens), etc.
Sua privatização buscou emancipar a indústria (no sentido capitalista do termo) de software da indústria de hardware e o sucesso desse empreendimento pode ser constatado pela acumulação sem precedentes promovida nas últimas décadas.
III - A Propriedade Intelectual: O Cercamento de um Bem Comum
A cultura é produto do trabalho humano. Sua produção implica em um desgaste de quem a produz, de nervos, músculos, etc. Porém, a cultura não consegue ser apropriada privadamente, a não ser de uma maneira artificial.
Bens culturais são bens imateriais e não concorrentes. Isso significa que, além de não ter um local onde fixar a etiqueta com o preço, o compartilhamento desses bens não tem um limite físico. Se eu tenho um pão e desejo dividi-lo, me restará apenas meio pão. Se eu quiser reproduzi-lo, terei que refazer todos os passos da receita que levaram a criação do primeiro. Não podemos simplesmente colocar o pão em uma máquina copiadora e copiá-lo. Diferente é o que ocorre com os bens culturais. Se eu tenho uma ideia e a comparto, continuo de posse da ideia em sua totalidade. Se eu ensinar uma música que compus, não fico sem ela. 8
Ou seja, a cultura não se conforma automaticamente como mercadoria, mesmo com o advento do sistema capitalista. Isso não quer dizer que ela não seja útil.
“Uma coisa pode ser valor de uso, sem ser valor. É esse o caso, quando a sua utilidade para o homem não é mediada por trabalho. Assim, o ar, o solo virgem, os gramados naturais, as matas não cultivadas etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso mas não mercadoria. Para produzir mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social. E não só para outros simplesmente (...) Para tornar-se mercadoria, é preciso que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca.” 9
A cultura representa uma resistência muito grande ao processo em curso de mercantilização de todos os aspectos da sociedade. Ela insiste em permanecer como um bem comum. Os mais importantes bens culturais são apropriados por todos livremente, como é o caso de um idioma falado por um grupo de pessoas.
Supõe-se, na teoria, que, desde que as obras estejam à disposição em bibliotecas e acervos, podemos autodidaticamente nos apropriar de qualquer conhecimento. Ainda que a realidade seja mais complexa, afinal o trabalho dos professores ainda é essencial para a transmissão cultural (mesmo face à expansão do ensino a distância), o fato é que não pagamos para utilizar as descobertas científicas, os teoremas matemáticos, o calendário, nem as leis da física. Não pagamos por utilizarmos partituras para escrever as músicas, nem por utilizarmos uma determinada escala musical.
Os bens culturais existem concretamente em substratos materiais (papel, CDS, neurônios, etc.). E necessitam dos mesmos para existir. Sua transmissão se dá por um movimento no mundo material. Quando lemos e memorizamos um texto, a luz refletida pela tinta que o representa no papel percorre nossos nervos e a ação do cérebro resulta em organizá-lo em nossos neurônios, colocando-os, ou parte deles, em movimento (sinapse).
Mas esses bens não são idênticos ao substrato em que existem e que são produzidos para sua reprodução. Em um CD gravado com músicas, além do trabalho de produção do mesmo e da gravação da música, houve esforço anterior, de composição das canções. O valor do trabalho de compor, presente em cada CD, se relativiza cada vez que a obra é reproduzida e por isso tende a (mas nunca alcança) um custo marginal zero. Um CD virgem custa poucos reais; o processo de gravá-lo, mais uma pequena quantidade de trabalho. Pense no caso do Michael Jackson, que vendeu bilhões em discos: por mais que sua obra e sua performance sejam produto de centenas de trabalhadores (coreógrafos, produtores, maquiadores), elas não possuem valor abstrato da ordem de grandeza dos bilhões de dólares movimentados.
O que observamos é uma discrepância grande entre o valor deste produto enquanto quantidade de trabalho e o preço que é praticado na sociedade. O engodo é apresentar essa diferença como o correspondente ao trabalho do autor, na forma “direito autoral”, quando é notório que esse valor computado alimenta na verdade os monopólios que intermedeiam os autores e os consumidores.
“A forma preço, porém, não só admite a possibilidade de incongruência quantitativa entre grandeza de valor e preço, isto é, entre a grandeza de valor e sua própria expressão monetária, mas pode encerrar uma contradição qualitativa, de modo que o preço deixa de todo de ser expressão de valor, embora dinheiro seja apenas a forma valor das mercadorias. Coisas que, em si e para si, não são mercadorias, como, por exemplo, consciência, honra etc., podem ser postas à venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria.”10
No caso dos bens culturais, que a moral não impediu de serem privatizados, essa apropriação privada só é possível através da coerção exercida pelo Estado que, ao impor leis de controle de acesso, como patentes e direitos autorais, gera uma escassez artificial que deforma o preço da mercadoria substrato negociada. Por isso, um CD gravado pode vender milhões de cópias e custar R$30,00.
Isso é ainda mais repugnante se levarmos em conta que um produto cultural, para ser feito, implica na apropriação de uma enorme massa de trabalho morto não mercantilizado. Uma música pressupõe a apropriação do trabalho de invenção dos instrumentos musicais, da teoria musical, da criação de um novo estilo musical, tudo isso gratuitamente. Assim como a produção de um texto apropria-se do idioma, dos textos anteriores, etc. Porém, por suas características peculiares, o bem cultural consumido como insumo produtivo não é necessariamente mercadoria, não se desgasta ao repassar valor de uso à mercadoria nova, dessa forma não repassa valor de troca. Quando é diferente o é por uma restrição jurídica. Por exemplo, na forma de royalties pagos, ou de licença de software, há uma agregação de valor de troca na nova mercadoria. Se um dia o ar fosse mercantilizado, o mesmo passaria a repassar valor de troca, como mercadoria insumo de um dado processo produtivo no qual fosse realizada uma combustão.
Porém, como as relações de produção estabelecidas cada vez mais não conseguem encerrar todas as forças produtivas existentes, uma rachadura se abre no esquema de dominação. É a contradição de o trabalho ser cada vez mais social e a apropriação cada vez mais privada.
Por isso, a infame batalha que os grandes monopólios de bens culturais travam para que a Internet não seja utilizada para compartilhar bens culturais. Esses monopólios tremem ao contemplar o PontoComunismo11.
Já para derrubar o falseamento da realidade que coloca que os autores têm de temer o fim da mercantilização dos bens culturais, é preciso uma nova sociedade onde, em um primeiro momento, cada um receba de acordo com seu trabalho. Artistas, cientistas, escritores, devem receber salários para executar seu trabalho e não viver de explorar a restrição ao acesso dos mesmos. Como colocou Stallman:
“Se programadores merecem ser recompensados por criarem programas inovadores, pela mesma medida, eles merecem ser punidos se restringirem o uso destes programas.”
Se no passado, antes de ser mercantilizada, a produção artística dependia da patronagem da nobreza, no futuro ela dependerá da remuneração consciente de toda a sociedade.
“É um consolo saber que a espécie humana conseguiu produzir um trabalho criativo decente durante 5000 anos que precederam 1710, quando o Estatuto de Anne, a primeira lei moderna de direitos autorais, foi aprovado pelo Parlamento Britânico. Sófoles, Dante, da Vinci, Botticelli, Michelangelo, Shakespeare, Newton, Cervantes, Bach - todos encontraram motivos para sair da cama pela manhã, sem esperar pela propriedade das obras que criaram.” 12
IV – Propriedade intelectual dos programas de computadores
Os programas de computador, quando surgiram, não eram comercializados. No início todo o software era livre. Desenvolvidos pelas comunidades acadêmicas, os mesmos eram publicados em artigos científicos e utilizados livremente. Porém, logo os mesmos foram controlados, a exemplo do que ocorrera com as músicas, e artificialmente transformados em mercadorias, através das licenças proprietárias.
Uma forma de se fazer algo, um algoritmo, um procedimento, uma receita. Transformar um programa de computador em uma mercadoria implica na privatização de tudo isso.
Isso é tão restritivo que impede, por exemplo, que, em um curso de Ciências da Computação, um aluno da disciplina de Sistemas Operacionais possa ter acesso ao código fonte do Windows ou de outro sistema operacional proprietário. Ou seja, existem formas de se resolverem problemas que não podem ser estudadas pelo interesse de um monopólio.
O mais natural é que a distribuição de software, como produto do desenvolvimento de ciência aplicada, fosse regida pela lei de patentes (que em si já é imoral) 9279/9613. Mas no mesmo artigo que desta lei exclui a possibilidade de se patentear, por uma questão moral, descobertas, teorias científicas, métodos matemáticos, concepções puramente abstratas, etc., excluí-se de seu domínio, também, os programas de computador “em si” 14. Porém, a exclusão dos programas de computador desta lei existe apenas para deixá-los sobre o domínio de outra lei mais restritiva, a de direitos autorais.
No Brasil, juridicamente a distribuição de programas de computador é regulada pela Lei de Direitos Autorais e também pela lei 9610/9815 ,que dispõem sobre os direitos autorais em geral, e, mais especificamente, pela lei 9.609/9816 .
A lei 9.609 determina que:
“§ 2º Fica assegurada a tutela dos direitos relativos a programa de computador pelo prazo de cinqüenta anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subseqüente ao da sua publicação ou, na ausência desta, da sua criação.”
Cinquenta anos para um programa de computador se tornar domínio público. Quando o seja, dificilmente rodará sem emuladores, nos computadores que então existam, devido ao desenvolvimento de novas arquiteturas.
Já o artigo 12 “Violar direitos de autor de programa de computador” determina:
“Pena - Detenção de seis meses a dois anos ou multa.
§ 1º Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente:
Pena - Reclusão de um a quatro anos e multa.
§ 2º Na mesma pena do parágrafo anterior incorre quem vende, expõe à venda, introduz no País, adquire, oculta ou tem em depósito, para fins de comércio, original ou cópia de programa de computador, produzido com violação de direito autoral.”
A destruição dessas leis é uma das batalhas que devem ser empreendidas.
V – Conclusão:
“Sem uma teoria revolucionária não há movimento revolucionário” 17
Este pequeno texto aponta algumas possíveis balizas para um estudo mais aprofundando que urge ser feito a respeito do problema da produção de software como um todo. Ele deve dar conta das questões materiais, infra-estruturais da sociedade, mas também da sua relação com a superestrutura e o arcabouço jurídico que determinam que um bem cultural seja mercantilizado.
Essa obra deve ser produto da colaboração e de uma interação maior entre os integrantes do movimento do software livre que se definem pelo materialismo histórico, ainda incipientes.
Dentro desse movimento, a luta teórica deve desenvolver-se e aproximá-lo do restante das lutas da sociedade, o que tem seus desafios, pois os proletários do software constituem uma aristocracia operária facilmente seduzível pelas migalhas que os grandes monopólios estão dispostos a entregar para não serem incomodados em seu banquete. Porém, a adesão destes trabalhadores é fundamental para a luta revolucionária, uma vez que sua ocupação é estratégica para o controle da sociedade desenvolvido pelas oligarquias.
1Na histeria do macartismo, J. Edgar Hoover, chefe do FBI, em carta, descreve investigação do FBI sobre Jonas Salk por supostamente colaborar com comunistas. Ver Grand Rapids Press, J. Edgar Hoover targeted polio vaccine inventor. Disponível em blog.mlive.com/grpress, acesso 21/07/2009.
22 www.gnu.org/philosophy/free-sw.html
3INVERTA Quem pratica a liberdade está vencendo a luta! Disponível em inverta.org, acesso 06/07/2009.
4REZENDE, Pedro A Re: [PSL-Brasil] [off] Golpe de estado em Honduras in lista-PSL Brasil Disponível em listas.softwarelivre.org mensagem de 04 de Julho de 2009.
5 Karl MARX, Manifesto do Partido Comunista, Rio de Janeiro, Inverta, 1998.
6Usamos aqui a divisão proposta pelo cientista político Aluísio Bevilaqua, que aparece em: , Aluisio BEVILAQUA, E depois de Bush? ; Um Círculo de Fogo sobre a América Latina; A Crise do Capital e o Fim da Hegemonia Mundial dos EUA in Jornal Inverta (editoriais) e também Aluisio BEVILAQUA, As Alterações Climáticas e a Globalização Neoliberal, Fortaleza, Editora Inverta, 2008.
7Esses dois parágrafos foram retirados de Rafael ROCHA, Software Livre é Socialismo, www.inverta.org.
8Richard STALLMAN, Entrevista a Revisata Byte disponível em http://www.gnu.org/gnu/byte-interview.html.
9 Karl MARX, O Capital: crítica da economia política, São Paulo, Nova Cultural, 1996. Livro I, Tomos 1 e 2. (Coleção Os Economistas).
10 Karl MARX, O Capital, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
11BARLOW, John Economia de Idéias, disponível em: http://stoa.usp.br/cristianogois/files/462/2310/barlow,_john+perry_economia_de_ideias.pdf
12Ibidem.
13http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l9279.htm.
14Como o Software Livre representou uma adaga no coração da Propriedade Intelectual baseado em direitos autorais, assistimos a uma migração novamente para a tentativa de patentear esses procedimentos, como os Padrões Digitais. Para saber mais: Pedro REZENDE, Para que servem mesmo as patentes de software?
15http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l9610.htm
16http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L9609.htm
17V. I. LENIN, Que fazer? Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Ômega, 1980.
Rafael Rocha é Graduado em História pela USP e em Ciências da Computação pelo Centro Universitário Senac.