Algumas palavras sobre o documento histórico A Luta dos Marinheiros, de Antônio Duarte
Poderíamos dizer que um documento histórico é um registro escrito ou pictográfico de uma pessoa, objeto, conjuntura ou ação social relevante para uma sociedade ou grupo social historicamente determinado. O livro “A Luta dos Marinheiros”, de Antônio Duarte, sem a menor sombra de dúvida, é um documento desta magnitude, tanto para a sociedade brasileira quanto para o historiador, o sociólogo, o cientista político, o antropólogo, o estudante ou o militante político e social, em especial, para os que despertaram para a luta política nesta passagem do século XX ao XXI porque, sobretudo, esta geração foi profundamente marcada pelo processo histórico que culminou com o Golpe de 1964 e com a Ditadura Militar que se seguiu ao mesmo, por mais de 3 décadas em nosso país. E tanto mais é importante historicamente esta obra quanto as decisões do atual governo, de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores e aliados, ao sancionarem um decreto que impede a abertura dos arquivos e documentos sobre este período por mais 30 anos. Nestes termos, mais que um documento histórico, é uma obra revolucionária, pois no momento em que as vozes se calam diante da distorção e dos falseamentos dos fatos, “A Luta dos Marinheiros” repõe em seu lugar a tarefa da história, ou seja, estabelecer a verdade sobre a luta dos marinheiros e seus personagens naquela conjuntura histórica.
Diz-se também, que o valor histórico de um documento não é apenas dado pelo registro de um devir histórico relevante, mas também pela sua fonte documental, ou seja, a origem do documento, mais precisamente sua autoria. E quem é o autor de “A luta dos Marinheiros”? Antônio Duarte, que não é apenas um estudioso que versa sobre um dos temas mais polêmicos do golpe militar de 1964 no Brasil. Ele, além de estudioso, graduado em Antropologia pela Universidade de Estocolmo (Suécia), é um dos personagens centrais do Movimento dos Marinheiros, que na literatura oficial é considerado uma das ações sociais principais utilizadas pelas oligarquias burguesas e o imperialismo norte-americano para golpearem as conquistas dos trabalhadores e do povo de um modo geral. Particularmente, pela monstruosa e fatídica ação desempenhada pelo presidente da Associação dos Marinheiros, José Anselmo, mais conhecido como “cabo Anselmo”. Não há figura mais enigmática daquela conjuntura histórica que a do traidor e espião “cabo Anselmo” e com ele a conexão mecânica da inferência da pecha para o conjunto do movimento dos marinheiros - de instrumental dos reacionários para ceifar o movimento revolucionário. Pois bem, Antônio Duarte, como presidente do Conselho Deliberativo da Associação dos Marinheiros e um dos líderes do Movimento ao lado de Pedro Viegas, Marco Antônio, José Duarte e Capitani; em seu livro, quebra um tabu e revela de forma simples a verdade sobre aquele homem que se tornaria famoso por sua traição ao movimento revolucionário e a luta de resistência à Ditadura Militar, “o Cabo Anselmo”. Mostra também em que momento, no curso da resistência à Ditadura Militar, se colocaram em lados opostos: enquanto Anselmo se dedicava a espionar e delatar os revolucionários, os demais diretores da Associação se atiravam contra as feras, “os gorilas”, e empunhavam armas em defesa da democracia e do povo.
A História é quase pródiga em ironias, porque justamente do setor considerado menos credenciado pela historiografia oficial, surge um documento tão importante e decisivo para a verdade sobre os acontecimentos e fatos daquele período. É irônico porque, por um lado, o estigma do personagem central, “o cabo Anselmo”, foi literalmente transplantado para todo movimento dos marinheiros, despontando sempre aquele ar de dúvida sobre os depoimentos desta fonte; mas também é trágico, porque o preconceito do “mundo culto oficial” qualificou o movimento dos marinheiros como um movimento desubalternos, um motim, e como tal, não merece voz e muito menos a de um dos seus protagonistas, pois não somente isto implicaria numa afronta à hierarquia militar, como ao status quo na sociedade, em especial, aquele que deriva da estrutura das classessociais, fazendo valer as palavras de Karl Marx e Friederich Engels, no Manifesto do Partido Comunista de 1848: “as idéias dominantes de uma determinada época histórica são as idéias da classe dominante”. Nestas condições é que se pode interpretar o quão revolucionário é esta obra de Antônio Duarte. Embora não tenha sido o protagonista principal do Movimento dos Marinheiros, como foi João Cândido no movimento da Revolta da Chibata, em 1910, que até hoje não é aceito como parte da historiografia oficial das Forças Armadas brasileira, em especial, da Marinha de Guerra, a importância histórica e revolucionária deste livro é comparável a existência de um possível escrito do próprio João Cândido sobre a Revolta da Chibata. Naturalmente, isto não significa dizer que o livro de Edmar Morel não tenha valor histórico e revolucionário, mas apenas a diferença de magnitude no caso de um trabalho proveniente do próprio protagonista, onde a sensibilidade se combina em profusão com a objetividade e a verdade dos fatos vividos historicamente.
O antropólogo e agora sargento reformado da Marinha de Guerra, Antônio Duarte, é originário do Rio Grande do Norte. Nasceu no dia 18 de fevereiro de 1940, na cidade de Pau dos Ferros, numa família pobre e marcada ab origine. Como a esmagadora maioria do povo brasileiro, para as crianças desta origem de classe social, em especial, no Nordeste daqueles idos (e até hoje), as opções de sobrevivência eram: o trabalho braçal na lavoura ou o trabalho no comércio e na indústria local. Mas para isso, era preciso lutar pela escolaridade na Rede Pública de Ensino, muitas vezes inacessível, ou alternativamente entrar para a vida militar. Foi assim que Antônio Duarte, em 1958, ao completar os dezoitos anos, com seu irmão, José Duarte, ingressa na Escola de Aprendiz de Marinheiro, em Recife. Assim mais que encontrarem a formação escolar, técnica e militar, encontram um mar de diversidade cultural e realidades exóticas que mudariam o curso de suas vidas, distanciando-se de todo aquele mundo interiorano e de pobreza local, onde nasceram e cresceram; no dizer da linguagem maruja, os meninos fizeram-se “mar” e com ele o sentimento de solidariedade que o nordestino carrega para com os seus, numa expressão do bandoleiro social “Corisco”: “O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”! Então nosso protagonista inicia o percurso de conquista da consciência de classe, com o choque das contradições sociais, econômicas, políticas e raciais do sistema capitalista na sociedade brasileira, e com esta, a necessidade da luta: primeiro para acabar com as humilhações e maus tratos dentro da Armada, depois, em toda a Marinha, e, finalmente, a luta pela reforma de todo o país. Daí, foi um passo para entender que a luta dos marinheiros não era apenas contra o inimigo externo e em defesa da pátria, como pregava a ideologia militar, mas, sobretudo, contra as oligarquias burguesas e o imperialismo norte americano que comandavam a sociedade em geral, as Forças Armadas, em particular, logo, a própria Marinha de Guerra.
O autor não tem por objetivo estabelecer uma explicação sociológica ou política para os acontecimentos, fatos e personagens históricos, mas como marxista-leninista que é, se prevalece da etnologia para revelar sentidos lógicos às idéias e ações sociais que narra e analisa. É fácil se perceber o método da explicação da consciência social através das contradições materiais presentes no ser social em questão. Sua abordagem é bastante objetiva e pode ser sintetizada em três grandes linhas de pensamento: primeiro expondo os fatos, no caso a conjuntura política do golpe de 1964, e o seu objeto de estudo, a Associação dos Marinheiros. Para isso, não somente mostra as contradições na vida militar, amparando-se em categorias marxistas, como revela que por trás da hierarquia, que é a pedra filosofal da organização militar, além do preconceito histórico herdado da Armada Colonial, está a ideologia de classe. Esta contradição é tão forte que impediu a constituição de uma organização comum entre os soldados marinheiros e os oficiais, até mesmo por parte dos oficiais de formação ideológica de esquerda, que diante da vida degradante e das relações a que são submetidos os marinheiros, fala mais alto o instinto de classe, a ideologia de classe, o ser social dos oficiais, que se reflete para além do distanciamento nos salários, na alimentação, acomodações e até mesmo no cheiro de uns e de outros na Armada. Por estas circunstâncias não havia uma interação democrática e toda a sinergia derivada da “ideologia militar e aspirações dos soldados” se dissipa pela falta de comunicação e desconfiança ou mesmo pela hipocrisia de muitos “superiores”, sem com isto esquecer a própria origem da soldadesca, proveniente da miséria da ignorância abissal que lhe é imposta. Neste corte, o livro revela de forma direta, “as ilusões do PCB”, que deveria promover a integração numa mesma linha estratégica e colaboração tática dos lutadores sociais, além de defender teses irreais sobre a revolução brasileira e as Forças Armadas, defendia uma organização estanque, a ponto de não permitir a interação entre seus membros e designar assistentes para a base existente no Movimento dos Marinheiros sem formação política capaz de sustentar uma visão mais rica da realidade. Neste capítulo é objetivo e preciso: “faltou uma organização única entre oficiais e soldados para resistir ao golpe e a ditadura”.
Outra grande linha de pensamento do livro é a formação da consciência dos marinheiros, onde a riqueza de detalhes e os elementos empíricos são tão intensos que nos conduzem a uma profusão de sentimentos e lirismo surpreendentes, tendo em conta a natureza da obra e o senso comum sobre os personagens em questão: os marinheiros. Naturalmente, para quem leu Júlio Verne (Vinte Mil Léguas Submarinas), Victor Hugo (Os Trabalhadores do Mar), Ernest Hemingway (O Velho e o Mar) ou Jorge Amado (Os Velhos Marinheiros), não há perplexidade em imaginar o romantismo, ousadia, heroísmo e lirismo dos argonautas que grassam os sete mares, entre estes os do lado de cá do continente sul-americano. Mas o que é surpreendente é o auscultar, em sua narrativa da vida no mar, a bordo no navio Tanque Rijo, as vozes dos poetas que povoam de significados os corações e mentes latinos, como o poeta abolicionista Castro Alves, com seu hino de revolta e indignação ao açoite e maus tratos no “Navio Negreiro”; o poeta português Camões, com seu cântico da aventura audaz de “navegar é preciso, viver não é preciso”, em “Os Lusíadas”; a resignação do poeta Casimiro de Abreu, com sua prece “Deus e o Mar”, em exteriorizações dialéticas da fenomenologia do espírito se sobrepondo à força da natureza. Uma metáfora que Antonio Duarte constrói para revelar as ilusões dos jovens grumetes e soldados e logo depois destruí-las como bolhas de sabão, no choque, por um lado, com a realidade da vida sobre o tacão dos oficiais superiores, da espionagem, da humilhação, dos maus tratos e da miséria das condições de vida e trabalho; por outro, com a ideologia dos oficiais, seus preconceitos e idiossincrasias de classe; e por último, com a real situação da armada do país, dominada pelo imperialismo e incapaz sequer de atender as demandas de defesa nacional, como fica visível no episódio da tentativa de abordagem do navio contrabandista e do papel auxiliar da Força Naval brasileira à Força Naval dos EUA, na Operação “Unitas” - o Brasil como repositório do lixo militar do imperialismo.
É claro que a recriação de um devir histórico, como rica síntese de um concreto de múltiplas determinações, não supõem um dado empírico sem um matiz. É por isso que o olhar de reconstituição, pela via do pensamento, da realidade concreta, logicamente, se distancia muito aparentemente daquilo que ao olhar do leigo, em seu senso comum, figura como desordenado e caótico. Contudo, o relato de Duarte é tão cabal que se pode compará-lo a um diário de bordo: em precisão de detalhes que chega a reconstituir estórias, como as “lorotas do Sargento enfermeiro Bernardino”; as aventuras pelos portos em busca das “senhoritas”, o lirismo das “impressões de viagem”, medo e humilhação como “o caso do marinheiro Belém”, solidão e camaradagem no desembarque na “Cidade de Salvador”; a dilapidação, entreguismo e pirataria do “Ferro do Brasil”; sofrimento, ambição e revolta com a família do bastardo José Anselmo na “Volta ao Rijo”; a angústia, paixão, mesquinharia, vaidade, e, sobretudo, sonhos e desilusões com a “Política no Brasil” e “Jânio Quadros e a Armada”; até a descoberta da luta na “Escola de Eletricidade”, entre a lúdica emulação dos grupos pró URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) versus os grupos pró EUA (Estados Unidos da América) e as “Discussões dos Marinheiros”.
É neste mar de sentimentos e relações sociais, ilusões e desilusões que os marinheiros, ou melhor, os soldados vão desvelando seu papel na história, e nele reconhecendo que seu papel de guerreiro, de defensor do Brasil, mesmo indesejável para alguns não é possível executá-lo dada as condições históricas de completa deficiência e pobreza materiais da Marinha do Brasil, refletindo a monstruosa contradição de um país, naturalmente e socialmente, de riquezas incomensuráveis, mas histórica e socialmente pobre, miserável e maltrapilho, como a maioria dos soldados marinheiros e do povo brasileiro, submetidos ao domínio secular das oligarquias nativas e estrangeiras, ontem feudais, hoje burguesas. Sendo assim, da mesma forma que os líderes da “Revolta da Chibata”, em 1910; bem como o movimento dos tenentes iniciado em 5 de Julho de 1922, com a rebelião no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro; continua no 5 de Julho de 1925, em São Paulo, de onde forma a histórica marcha da Coluna Prestes, que jamais foi derrotada em combate e exila-se na Bolívia; e sobretudo, o 5 de Julho de 1935, que culmina com o Levante de Novembro, em Natal, Recife e Rio de Janeiro; a formação da consciência dos marinheiros segue esta tradição que torna verdadeira a existência de uma tendência popular e democrática dentro das Forças Armadas brasileiras, bem como a luta pelo progresso tecnológico da sociedade.
Entretanto, a parte mais importante da história contada na “Luta dos Marinheiros”, de Antônio Duarte, se condensa nos quatro últimos capítulos, em que ele discorre sobre a razão e conseqüências da consciência a que chegaram os marinheiros da Associação. Inicia com o desmonte da “Ideologia da elite militar brasileira e a dos soldados”, mostrando que seu matiz filosófico, o positivismo mecânico e oportunista, não vai além do utilitarismo geopolítico de Golbery do Couto e Silva, seguindo à risca a doutrina de “Segurança Nacional” formulada pelo Pentágono nos Estados Unidos; bem como seu desenvolvimento material e bélico, que não vai além do tratado de cooperação e armamento assinado em 1947, que significa importação de sucata bélica e o papel de auxiliar às Forças Armadas dos EUA. Neste aspecto, o que se extrai é uma amálgama ideológica de servilismo e resignação, cuja máxima palavra de ordem, que a tudo de pensamento crítico dissipa com a força cabalística de “o que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Neste sentido, diante da conjuntura mundial, de ascensão da URSS e do movimento geral dos trabalhadores, e a situação histórica singular a que chegava oBrasil, com a renúncia de Jânio, o levante civil comandado por Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul, impedindo o golpe e garantindo a posse do vice João Goulart, na Presidência da República, não se podia esperar outra coisa que a trama e conspiração reacionária das oligarquias burguesas nacionais e norte-americanas, e como ela, cedo ou tarde, o golpe de força, a violação de todas as instituições e da Constituição do país, a derrubada do “Estado de Direito e a Democracia”, constituindo em seu lugar, pelas armas, o Estado Discricionário e Ditatorial.
Neste sentido, o avanço da luta de classes em todas as partes, fundado na experiência da Revolução Bolchevique de 1917, na Rússia; na vitória absoluta da URSS sobre o nazi- fascismo da Alemanha, ao chegar à China (1949), aos países do Leste Europeu (1947 - 1954), Indochina (1947), Coréia do Norte (1954), Cuba (1959-1961), bem como o movimento de Libertação Nacional na Ásia, África e América Latina tornou-se o discurso escatológico reacionário das oligarquias burguesas no país e a pedra de toque para o terror da “ameaça comunista”, da “república sindicalista”, da “anarquia”, da violação da “sacrossanta propriedade privada” e domínio imperialista. Esta ameaça estava presente nas Reformas de Base do governo João Goulart, em especial, a “Reforma Agrária” e “A lei de limitação da Remessa de Lucros” pelas empresas estrangeiras; e na reforma reivindicada pelo “Movimento dos Marinheiros”, que colocava em cheque a estrutura dorsal de defesa do Estado burguês, com a quebra da hierarquia e disciplina,subvertendo a ordem interna da organização militar, como protagonizou o movimento desencadeado pelos sargentos em Brasília, tendo a frente Antônio Prestes de Paula, que toma as instalações militares da cidade e cerca o Ministério do Exército, caindo por falta de solidariedade e organização. E é assim que se forja a farsa processual na Justiça Militar para incriminar politicamente o movimento dos marinheiros, em especial, suas lideranças. A prova contundente deste fato é a inexistência sequer de uma maioria de militantes do PCB na Associação dos Marinheiros; Antônio Duarte, que foi condenado por agitação e organização de células comunistas entre os marinheiros, a uma pena que chegou a 8 anos, na Penitenciária Lemos de Brito, não consegue contar além de quatro membros da Associação dos Marinheiros que eram militantes do PCB.
Encerrando este tema, do convívio no cárcere onde se reencontra com seus velhos e sinceros companheiros de luta, Marcos Antônio, que era o líder inconteste do núcleo dirigente do Movimento dos Marinheiros, Pedro Viegas, redator histórico do Jornal “Tribuna do Mar”, José Duarte, irmão e companheiro de luta por todo o tempo; encontrou com a figura histórica do sargento Antônio Prestes de Paula e formou novas amizades, com o assim conhecido grupo de presos comuns, entre estes destaca José Michel de Godoy e André Borges, que aderiram à luta revolucionária compreendendo o sentido real da miséria e opressão que viviam e a real forma de se libertarem da mesma: a revolução social. Também existiu a presença dos estudantes de direito, que dedicados à causa da justiça e ao conhecerem a história dos marinheiros presos políticos, passaram a acompanhá-los a ponto de se envolverem afetiva e politicamente.
Pollo e seus informantes e colaboradores, como Djalma e Tojal. Neste aspecto, os ecos de resistência do movimento. Estudantil chegam pela assistência jurídica aos marinheiros na Lemos de Brito e a idéia de retomar a luta arde no peito destes intrépidos soldados e a fuga espetacular se faz rumo a base de um foco guerrilheiro, na Serra do Mar, em Angra dos Reis e São Paulo, planejado e urdido entre as grades e contatos fora da prisão. Desta vez, nada como os “Guerrilheiros de Copacabana”, sobre direção da POLOP, que mal saiu dos prédios da zona sul do Rio de Janeiro; nada como a assembléia da Associação dos Marinheiros, cujo discurso pronunciado pelo presidente José Anselmo, escrito por Carlos Marighela, apenas selaria a sorte do movimentoredundando na prisão de mais de 300 soldados; desta vez a luta era definitiva.
Neste episódio, todo o desfecho da trama histórica por onde germinou “A Luta dos Marinheiros” foi se condensando. A cabana no alto da Serra do Mar, os cerca de 10 guerrilheiros que ali se encontravam, as poucas roupas, alimentação, fuzis e armas ligeiras que possuíam não eram problema algum diante do sonho de liberdade, fora da imundície e opressão da vida a bordo do Tanque Rijo - o fedor do óleo, os trapos que serviam de vestes, os maus tratos; fora o cárcere e os cubículos onde se respira o odor fétido da latrina, o frio, a solidão, a angústia e a opressão. Para os guerrilheiros, o exemplo da revolução Cubana, dos revolucionários Fidel Castro, Che Guevara, Raúl Castro e Camilo Cienfuegos, era tudo. Porém, mais esta idílica ilusão se desmancharia como bolha de sabão ao ar. Naturalmente que desta vez, com luta de verdade. Duarte lembra com riqueza de detalhes todo o combate com a chegada do Batalhão de Fuzileiros Navais, apoiados por helicópteros: a ação decisiva de Pedro Viegas, ao sustentar o fogo contra o inimigo, dando possibilidade para que todos pudessem se evadir do local sem baixas. Não esqueceu também de registrar a bravura do guerrilheiro e ex-preso comum José Michel, que ferido pelo fogo inimigo, foi novamente preso. Sem receio, confessa abertamente que tremeu e suou frio diante das descargas do inimigo e que em companhia de Marco Antônio, após arrefecer o combate e as buscas aéreas, bateram em retirada para encontrar os demais camaradas em outro local previamente combinado. Desfeita as ilusões de uma resistência à Ditadura Militar nos moldes do foco guerrilheiro cubano, restou aos heróicos combatentes a grande retirada e a reorganização das forças para novo embate. Mas ao se defrontar com a nova realidade, a desarticulação completa do movimento, por absoluta falta de condições de resistência no Brasil, marchou para o exílio: primeiro em Cuba, depois na Suécia.
Vê-se que o livro A Luta dos Marinheiros de Antônio Duarte, é um trabalho monumental que recobre 358 páginas de imagens, impressões e reflexões, sobre um ator social, comumente, sem voz e sem vez na sociedade brasileira. O valor histórico deste trabalho, mais que estabelecer o papel revolucionário da verdade histórica, eleva o espírito humano pela incrível sensibilidade com que seus personagens se recobrem de carne,osso, sangue, nervos e sensações. A lógica é a explicação do devir histórico, pelas contradições que impulsionam e são impulsionadas pela ação social, mais precisamente, a luta de classes. Ao pensar o soldado cidadão, reivindica à soldadesca o papel consciente e de sujeito histórico; ao problematizar as causas da derrota ante ao golpe de 1964, indica precisamente o remédio para o mal, ou seja, uma organização unitária de soldados e oficiais militares. Ao problematizar as grandes questões nacionais e internacionais eleva a visão vulgar do cidadão comum ao movimento elíptico do desenvolvimento histórico da humanidade e a solução destas contradições através da atitude e a determinação revolucionária de lutar contra a injustiça e opressão sociais, seja aonde seja. Antônio Duarte não é um herói de quadrinhos, ou um galã ao estilo dos enlatados hollywoodianos, ele é um combatente de nosso povo e como tal, ao contrário de renunciar à luta ou renegá-la continua sua missão histórica de luta pela verdade e luta pela Revolução. Hoje, tanto a anistia atrofiada conquistada, como seu reconhecimento histórico e acadêmico, pois é autor de outro trabalho publicado no Brasil, “Trabalhismo e Social-demo- cracia”, não o fazem menos humano, sensível e idealista moral, como qualquer jovem revolucionário que descobre a luta e salta por sobre os edifícios de dificuldades para levá-la a cabo. Duarte não esquece sequer os camaradas de luta, citando-os seja como fonte de dados, a exemplo do relato do cabo Raimundo Porfírio sobre a Rebelião do Bracuí; seja como exemplo de martírio dos sonhos espezinhados pela Ditadura, o caso do jovem marinheiro Índio, que preso sofria com a dilaceração da sua família. Por tudo isto, fez deste livro mais um instrumento de luta e confrontando à versão do dito “mundo culto”, num acerto de contas com a historiografia oficial.
Naturalmente que não foi possível abordar todos os detalhes e segredos que se revelam neste livro, e também seria até contra producente fazer isto, contudo embora tenha abordado apenas ínfima parte da obra, espero que este prefácio desperte o desejo incontrolável a todos para que leiam a obra. Para finalizar, quero apenas estabelecer um paralelo entre o corte na historiografia da classe trabalhadora a partir do livro escrito por Friederich Engels, “Situação da Classe Operária na Inglaterra”, final da primeira metade do século XIX, ou seja, há cerca de 154 anos, e o livro de Antônio Duarte, “A Luta dos Marinheiros”, que ora chega a todos, sob a acuidade editorial da Inverta Cooperativa de Trabalhadores em Serviços Editoriais e Noticiosos Ltda., que, sem dúvida, marcará como o de Engels, uma nova fase na historiografia do movimento dos marinheiros e da luta de resistência à Ditadura Militar no país. Em ambos trabalhos a pesquisa etnológica é capaz de produzir um novo olhar sobre a realidade histórica, fazendo cair mitos e elevando o senso comum ao pensamento crítico, obrigando a todos que versem sobre este problema histórico tomá- los como referência. “Tudo o que é sólido, se desmancha no ar” - disse o pensador mais fecundo do milênio, Karl Marx - , e a obra de Antônio Duarte está aí para demonstrar a verdade histórica desta assertiva, e como aqueles pensadores que iniciaram este movimento histórico de retirar a consciência das massas, em especial do proletariado, da infância e ignorância perante o mundo e sua própria força, Duarte, segue na luta, fazendo valer as palavras com que encerra este trabalho: “A Luta Continua!”. Quem duvide da coerência do autor a esta palavra de ordem que saibam: ele se mantém na militância e na luta revolucionária, apenas trocou de armas, e agora empunha o Jornal Inverta e sua organização, como instrumentos de luta. Finalmente deixo aquiminhas últimas palavras sobre este documento histórico, “A Luta dos Marinheiros”, de Antônio Duarte, parafraseando o linguajar da marujada presente no trabalho do autor:“Façamo-nos ao Livro”!
Estado do Rio de Janeiro, 10 de maio de 2005.
Aluisio Pampolha Bevilaqua Sociólogo, escritor e editor do Jornal INVERTA