O Belo, o Feio e o Justo (Crime e Castigo no Brasil)
Novamente, a sociedade brasileira está diante de um impasse histórico: entre continuar o tortuoso períbolo de genuflexões aos ditames imperiais da oligarquia financeira internacional ou mudar de caminho e declarar a independência e soberania do país. A esperança de mudança que milhões de brasileiros, em especial a classe operária, depositou em Luiz Inácio Lula da Silva e na coalizão de forças, liderada pelo Partido dos Trabalhadores, aos poucos se esboroa num lamaçal de ressentimentos e lamúrias que a qualquer momento pode se transformar em protesto indignado. A fratura entre o governo e os “rebeldes” passou das cartas indignadas, como a de César Benjamim, denunciando o que qualifica de “O Triunfo da Razão Cínica”; ou do sociólogo Francisco de Oliveira, “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, comunicando seu afastamento do PT e qualificando o “governo Lula como terceiro mandato de FHC”; ao ato de expulsão dos quatro parlamentares rebelados contra as decisões do governo e a direção do PT (os deputados federais Luciana Genro, João Batista de Araújo - o Babá, João Fontes e a senadora Heloísa Helena). Com este acontecimento, cresceram os fatos que permitem, mesmo aos leigos em política, associar as decisões do Governo Lula e do PT, a uma ruptura com parte de seus princípios e, conseqüentemente, parte do seu programa doutrinário e eleitoral que tanto entusiasmou a operários (empregados e desempregados), camponeses (com terra e sem terra), trabalhadores agrícolas, estudantes, aposentados, militares, minorias étnicas, enfim, os explorados e oprimidos na sociedade, que lhe deram a maior votação para presidente em toda a nossa história republicana.
O quadro torna-se dramático e, se analisado com maior profundidade, nos leva a previsões sombrias para todos. Pois tal conjuntura não decorre apenas de um ato impensado ou mesmo de uma simples escolha de Lula e seu séqüito, como faz parecer a fala de Brizola na televisão. Na verdade, partindo-se do grau de dependência do sistema econômico e político do Brasil ao imperialismo, em especial aos EUA, e considerando ainda a conjuntura mundial, marcada pela nova ofensiva contra-revolucionária do capital, através da guerra pela conquista de mercados, matérias-primas e o controle da resistência ao seu projeto de hegemonia neoliberal, não há outra saída mantendo-se no sistema capitalista. Não se pode negar que a partir de 11 de Setembro de 2001, o ataque às torres gêmeas do WTC e ao Pentágono, nos EUA, todo o movimento de contestação à Internacional Capitalista, seus fóruns e instituições (Fórum Econômico Mundial, FMI, OMC, etc.), em Seattle, Gotemburgo, Gênova passou a segundo plano, enquanto que a guerra dos EUA contra o Afeganistão, o Iraque, bem como a ameaça da expansão do conflito que o Sr. Bush rotulou de “Eixo do Mal”, passou ao primeiro plano e monopolizou a opinião pública mundial. E no atual momento, quando o desgaste dos EUA e Inglaterra com a invasão no Iraque já se fazia sentir em todas as partes e reanimava em todos a luta pela resistência, novamente as oligarquias tiram, literalmente, da manga do colete uma “carta”: a prisão de Saddam Hussein, apresentado-o num buraco e como se fosse um misto de mendigo e rato (ladrão e covarde). A mídia nazi-fascista promove o espetáculo e a ela pouco importa se Saddam estava dopado; se a utilização de sua imagem, nestas condições, é um crime de guerra, como Bush e Rumsfeld alegaram, quando da exibição da imagem dos soldados americanos presos, nos primeiros dias da guerra, pelo governo do Iraque.
Estes acontecimentos são expressivos de uma tendência conjuntural no plano internacional, como se pode comprovar pela “caça às bruxas” em todas as partes do mundo; a licença para Ariel Sharon matar Iasser Arafat e assim por diante. A intolerância da reação chega ao limite da cena histórica e eventos que antecederam a II Guerra Mundial: o caso da invasão da Alemanha, a Áustria e depois Tchecoslováquia. Na América Latina, as oligarquias se aproveitam do momento para, como Sharon, esmagar tanto seus desafetos quanto sua oposição, mesmo que ela esteja no governo, como é o caso da maioria dos países latinos que chegaram ou estão no limiar da situação de bancarrota ao seguir o receituário neoliberal: Venezuela, Equador, Argentina e Brasil. Para confirmar isto basta ver a campanha golpista contra Hugo Chávez, na Venezuela; a euforia da “gusanada” contra Cuba e Fidel Castro; a campanha contra Gutiérrez, no Equador; a intensificação da repressão ao povo colombiano e sua guerrilha (FARC-EP e ELN). No Brasil, a ação das oligarquias não fugiria a esta regra do oportunismo em política, tomando a conjuntura como pano de fundo das decisões, diante do impasse histórico que atravessa a sociedade, entre “o ser ou não ser imperialista”, ou entre “ser imperialista e não romper com a submissão ao imperialismo dos EUA”, arremete-se contra a oposição empurrando-a para a direita e a reação, fazendo-a regredir aos tempos dos “porões da ditadura”, à “caça as bruxas”, ao "ame-o ou deixe-o”. Mudam-se os nomes, os atores, mais o enredo é sempre o mesmo: à burguesia, a acumulação; ao povo, a miséria; às oligarquias a casa grande; ao povo a senzala; aos rebeldes o açoite e o pelourinho, até a morte; “yes, if we don’t have terrorists or revolutionaries; we have drug dealers and community’s leader” (sim, se não temos terroristas; temos traficantes e líderes comunitários). Se não temos Saddam, temos o Belo, o Sombra, o Rumba... (eis como pensam alguns homens da “inteligência” do governo).
Esta conjuntura se torna ainda mais decisiva quando se observa a essência da questão: a crise de acumulação que enfrenta o capital produtivo no país, atingindo em cheio as camadas médias e a classe operária. O impasse se registra num crescimento quase zero da economia nacional (Produto Interno Bruto de 0,4%) este ano e para 2004 projeta-se um “crescimento” de 3,5%, quando necessitaria crescer, pelo menos, a taxas médias de 6%, para num prazo de 10 anos voltar a sustentar índices anteriores à crise geral do capital manifestada no início dos anos 90, do século passado. O Brasil, em 2003, continua no limiar dos 450 bilhões de dólares de PIB, igual ao valor registrado em 1989. E é claro que durante esta quase década e meia, a população cresceu em mais 32 milhões de pessoas; a renda média dos salários caiu cerca de 14% e o desemprego chegou a 12 milhões, ao passo que entrou e saiu governo (Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique), todos aplicaram o receituário neoliberal do FMI. Privatizou-se o país, flexibilizou-se a mão-de-obra ao limite da escravidão e acumulação primitiva; taxou-se as camadas médias e arrochou-se o funcionalismo; o protesto dos operários foi silenciado a cacete e os camelôs e sem-terra tratados como criminosos (vejam o caso de José Rainha) e aos lutadores sociais, na impossibilidade histórica de imputar-lhes a pecha de terrorista, lhe rebaixaram à categoria de traficante (caso atual de Rumba). No entanto, nada adiantou, o Brasil continua estagnado economicamente para os trabalhadores, enquanto que para as oligarquias financeiras nacionais e internacionais, o paraíso. E enquanto perdurar esta situação, as camadas médias que são o alvo tanto do governo (fisco), quanto dos desesperados da pobreza (roubo, assalto e etc), continuarão nas ruas a clamar por “Não à Violência e Pau nos camelôs, cadeia para Sem Terra e líderes comunitários; chacina para os menores de rua e Carandiru para a superlotação dos presídios”, através dos seus movimentos “viva rico”, como diz Rumba Gabriel, com “muita propriedade”.
Mas se economicamente, a conjuntura de contra-revolução permite ao governo Lula e ao PT atraiçoarem suas bandeiras econômicas e programáticas, ou mesmo o programa de campanha eleitoral, fazendo letra morta da reforma agrária, da luta contra a ALCA, do fim dos acordos espúrios com o FMI e a banca internacional; não se pode esperar que politicamente, fosse também diferente. E, justamente, neste terreno, na medida em que se acentua seu corte conservador e continuísta de FHC, mais e mais o governo de Lula e o PT mergulham em contradições, tendo que conviver com a corruptela, o clientelismo, o charlatanismo e a violação dos direitos mais elementares do povo pobre e trabalhador. Paralelamente, para quebrar a resistência a suas medidas neoliberais e afogar as denúncias dos acordos espúrios e a corrupção que se amalgamam na base governista, é obrigado também ao convívio com os oportunistas, carreiristas, os malandros e aventureiros de toda espécie; fazer aliança com deus e o diabo, até mesmo com figuras que habitavam os porões da ditadura. E, na medida em que vai tentando conter a erupção de sua base popular mais e mais a tendência à reação se acentua. A expulsão do grupo rebelde do PT é o recurso autoritário que visa isolar e calar a voz dos que discordam da balada monocórdia neoliberal, que já domina a todos, denuncia a guinada ainda mais à direita do governo abarcando o PMDB e revelando o caráter cada vez mais duvidoso dos que se tornam comunistas, socialistas, revolucionários, nacionalistas, trabalhistas ou revoltados, de última hora, como se comprova pela posição do Sr. Miro Teixeira, Garotinho e tantos outros. O mesmo é válido para os outros partidos e grupos políticos da base de sustentação do governo, que se atolam na lama e já não sentem a diferença entre viver nela e contra ela.
E quando, ao nível da política não se vive mais no limite entre “Crime e Castigo”, entre lógica e ética, como escapar ao drama de Raskolnikov? Eis o problema fundamental do Governo Lula: o atordoamento psicológico em que vive o herói de Dostoievisk, em "Crime e Castigo". Pois, para além do que projeta o homem, a história real, a luta de classes, sempre colocará questões novas imanentes à práxis social e inesperada, seja pela ética ou princípios doutrinários, seja pela lógica científica. Portanto, apesar de tudo que planejou a tecnoburocracia do governo Lula e do PT para continuarem no poder político “ad infinito”, eis que ressurge o conservadorismo econômico e o clientelismo em política, e com ele, o problema histórico do calabouço, da tortura, das execuções e penas capitais aos pobres, explorados e oprimidos da sociedade, justamente na base que teve e ainda tem o maior apoio e militância. Teria esta classe social o papel da prostituta, que o jovem ouve como a voz da razão e encontra a redenção, pelo amor e o evangelho, ou este papel cabe à esquerda oportunista que tem apoiado até o momento o nosso Raskolnikov? Embora esta resposta não esteja clara, não se podia esperar outra coisa de quem pensou em matar a velha malvada (Previdência) sem com isso matar também sua boa irmã, a legislação trabalhista (jogando milhões no desemprego), e a esta, sem matar consecutivamente suas primas, reforma agrária e reforma fiscal. Portanto, resta saber de agora em diante quem desempenhará o papel do Belo, do Feio e do Justo nesta história, que ainda não terminou e que pode protagonizar eventos inesperados, fora do “controle”. Pois, no fundo da questão, o problema não é a morte da velha, mas da irmã para a qual não há justificativa moral, apenas lógica para a morte: o crime para encobrir outro crime!
George W. Bush esperou a proximidade do natal para oferecer como presente à oligarquia financeira internacional a cabeça de Saddam Hussein, mas até agora não apresentou as provas concretas das armas de destruição em massa que denunciou e justificou a invasão e genocídio contra o povo iraquiano. E o Lula, o que tem a oferecer às camadas médias que estão sendo achatadas, tanto pela crise do sistema, do ponto de vista econômico, quanto pela violência? Por acaso seria as reformas ou o ato protagonizado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, através do desembargador Flávio Magalhães, condenando o repórter-fotográfico, da redação do INVERTA e líder comunitário Rumba Gabriel a 8 anos de prisão, “por associação e incentivo ao tráfico de drogas”, quando na verdade todos sabem (traficantes e policiais), que ele é inocente e responsável por um dos maiores e importantes trabalhos, social e cultural, que retira as crianças e demais pessoas da alternativa da sobrevivência no tráfico, como é o caso do Cento Cultural no complexo da favela do Jacarezinho? Quem sabe a resposta seja a do governo de São Paulo, Geraldo Alckmin, apresentando o “Sombra” como o responsável pelo assassinato do ex-prefeito de São Bernardo, Celso Daniel? Vê-se, assim, que o dilema entre Crime e Castigo não é simples de responder, pois ele é prisioneiro dos eventos que desencadeiam nossa ação, cuja interconexão não dominamos totalmente. Do mesmo modo que, o Belo, o Feio e o Justo, como elementos de estética que dão forma ao nosso olhar sobre o mundo e eventos humanos nem sempre se enquadram à associação da lógica vulgar, pois, quem é o Belo, o Feio e o Justo na história? Por acaso o Belo é o Bush, o Lula, o Garotinho, a Rosinha, o Alckmin, o desembargador Flávio? E quem é o Feio, Saddam Hussein, o pagodeiro Belo, o Rumba Gabriel, o Sombra? E o justo? Seria o Belo, o Feio ou quem sabe o Povo? Nestas circunstâncias, em que a lógica e ética se comprimem à dimensão da política oportunista dos camaleões de direita e esquerda, resta-nos uma pergunta: e quem será a prostituta de Dostoievisk que irá redimir o governo Lula? As velhas oligarquias ou a esquerda oportunista?
Para nós, o caminho é o da luta contra o capital e o imperialismo!
Defesa dos trabalhadores e luta contra o governo neoliberal!
Abaixo a nova onda de terror contra os trabalhadores no mundo!
Abaixo a criminalização das lideranças e movimentos sociais!
Abaixo a condenação de Rumba Gabriel!
Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 2003. P. I. Bvilla/ Pelo OC do PCML