Quiromantes, magos e a leitura transformadora do mundo
Quiromantes, magos e a leitura transformadora do mundo
Por: Antonio Cícero
“Ler” é a resposta de Karl Marx à pergunta de qual sua ocupação favorita, feita pelas filhas Jenny e Laura, num daqueles questionários que se costuma fazer para se verificar as preferências de alguém. Ler em voz alta para os filhos era outro hábito de Marx, como também reler todos os anos as obras clássicas de Ésquilo e Shakespeare.
Lembramos deste aspecto da vida de Marx para tentarmos ver até que ponto uma bienal do livro pode ajudar na formação desse hábito.
Trata-se
de um evento grandioso e intensamente divulgado nos meios de
comunicação, matéria obrigatória nos
jornais, alguma coisa também sai na televisão e no
rádio. Escolas se mobilizam para participar e grupos diversos
se integram às atividades. Os dados confirmam um crescimento
do evento: este ano são mais de 765 expositores (além
de editoras, instituições diversas montam estandes para
venda e divulgação de suas atividades).O evento é
promovido pelo Sindicato dos Editores de Livro, dentro de uma
estratégia de lucro máximo, não se distinguindo
de qualquer outra atividade capitalista. Até o ingresso é
cobrado, o que representa uma clara exorbitância. Será
que os capitalistas não acham exagerado se pagar para comprar?
No entanto, esta é uma contradição apenas aparente, na verdade, os diversos eventos que aí se organizam parecem justificar tal procedimento: quiromancia, tatuagem, espelhos mágicos e videogames apontam para algo que não o livro. O capitalismo, além de transformar tudo em mercadoria, como lembram Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, se empenha em confundir ciência com superstição, arte com tapeação e outras confusões.
Aqui estamos numa clara situação de desvios perigosos. Precisamos mais do que um mapa dos estandes para separar o joio do trigo, já que os autores mais badalados pela imprensa burguesa são aqueles que dizem não acreditar na política e nas ideologias ou que um livro sobre sexo e negócios destina-se a “fazer com que as mulheres ganhem mais dinheiro”.
Há dois temas presentes na bienal que podem nos ajudar a responder a pergunta inicial. O primeiro é o espaço destinado a homenagear a poesia brasileira. Carlos Drummond de Andrade, no ano do centenário de seu nascimento foi homenageado com a apresentação da Companhia Itabirana de Teatro no dia 18, em evento conduzido pelo poeta Afonso Romano de Sant’Anna. Além disso, três livros de Drummond ganham edições novas: Brejo das almas, segundo livro publicado pelo poeta e que fala sobre sua cidade natal, prefaciado por Edmilson Caminha; Sentimento do mundo e A rosa do povo, ganham novas edições com prefácios, respectivamente, de Silviano Santiago e Afonso Romano de Sant’Anna.
Na
área das ciências humanas e sociais, destacamos três
lançamentos. O
império do Monte Belo: vida e morte de Canudos,
de Walnice Nogueira Galvão, publicado pela Record, que retoma
a história do conflito ocorrido em 1897 no sertão
baiano, avançando em pesquisas que valorizam a obra de
Euclides da Cunha na preservação da memória de
Canudos, mas, ao mesmo tempo, incorpora novos aspectos à
figura de Antonio Conselheiro e denuncia o medo das classes
dominantes com a evasão de mão-de-obra de suas terras e
a ameaça à propriedade privada.
O livro Karl Marx, de Francis Wheen, da mesma editora, é uma nova biografia, motivada, segundo o autor, pela imensa atualidade da obra marxiana. Em entrevista, Francis Wheen reproduz a opinião de um banqueiro, ao ser perguntado se tinha lido Marx: “Sim, todos nós o lemos em Wall Street [centro financeiro americano], pois ele compreendeu o capitalismo melhor que ninguém. É uma leitura obrigatória para quem quer ser um banqueiro sério em Wall Street”. Desigualdade social e dualidade escolar: conhecimento e poder em Paulo Freire e Gramsci, de Aparecida Tiradentes, editora Vozes, analisa a contribuição desses dois autores para o ensino integral, capaz de formar para o trabalho e desenvolver as potencialidades humanas. Negar uma formação humanística ao proletariado é transformá-lo em “ monstro de mãos e olhos ágeis”, dócil aos ditames do capital, lembra a autora.
A importância que os banqueiros de Wall Street dão aos livros de Marx deve despertar nossa atenção: as idéias e o método do materialismo histórico precisam se constituir mais e mais na ferramenta que permitirá ao proletariado ser classe dirigente e alcançar o poder, iniciando a construção do socialismo. E a formação do hábito de leitura não pode contar somente com bienais tão elitistas (esta semana ouvi um aluno dizer que economizou meses para comprar alguns livros e um outro que disse ter voltado sem comprar nenhum, pois o mais barato a lhe interessar custava trinta reais), percorrer sebos e feiras de livros (estas além de não cobrarem ingresso, oferecem descontos) são práticas a serem estimuladas para que mais pessoas possam adquirir livros e se engajar na ação transformadora do mundo.