As manifestações do 1º de Maio no Rio de Janeiro (1890-1906)
As manifestações do 1º de Maio no Rio de Janeiro (1890-1906)
Por: Bernardo Kocher
Historiador, mestre em História pela UFF
*Tese de Mestrado / Revista Arrabaldes. Ano I, nº 2, set./dez.1988. (continua na proxima edição)
As primeiras manifestações do 1º de Maio no Rio de Janeiro vieram sob o impulso dado pela recém-instalada República. O novo regime ao instaurar formalmente a cidadania burguesa trouxe a expectativa de que inúmeros direitos inerentes a uma sociedade moderna fossem implantados no Brasil. O sufrágio universal e secreto, leis de proteção ao trabalho, a participação ativa na vida política e institucional do país, entre outras melhorias, eram progressos que a classe operária local contava que seriam alcançados com o advento da República.
Naqueles primeiros momentos, nos quais ninguém poderia afirmar com segurança os caminhos que seriam trilhados no futuro republicano, na medida em que a ‘coalizão burguesa’ ainda não estava perfeitamente delineada, a euforia parecia ser o meio de manifestar os anseios e expectativas da sociedade. A República foi o desaguadouro de energias há muito contidas no cenário das transformações econômicas e sociais por que vinha passando a formação social brasileira desde o Império, não se constituindo, no entanto, em uma transformação radical do que a precedera.
Será num contexto extremamente rico de novas idéias que surgiu uma das propostas políticas mais pujantes e criativas. Oriunda da classe operária, o 1º de Maio continha em si um imenso corolário de questionamentos, e se afirma como uma das mais consistentes e profundas reflexões sociais da época.
Diferentemente do que afirmam alguns autores, a primeira manifestação de 1º de Maio no Brasil não ocorreu em Santos, no ano de 1895, por iniciativa do médico Silvério Fontes e um grupo de socialistas locais. Em 1890 a imprensa carioca já havia se manifestado acerca da passagem da data e, no 1º de Maio daquele ano, foi lançado o Manifesto-Programa à Classe Operária do Partido Operário. Na realidade este manifesto foi lançado a 29 de abril, certamente por influência da proximidade do 1º de Maio. De qualquer forma, neste ano já se conhecia plenamente o significado da data.
Nesta primeira fase encontramos o movimento operário carioca manifestando-se no 1º de Maio com a ênfase no LUTO. As principais atividades do operariado na data eram:
a) salva de tiros - ocorrendo ao romper do dia, ou durante a madrugada (“alvorada”), podendo ser substituída por outro tipo de manifestação, como por exemplo fogos de artifício;
b) ida ao cemitério - realizada nas primeiras horas da manhã de 1º de Maio, quando uma comissão de operários de uma determinada entidade visitava os túmulos de lideranças e/ou companheiros da entidade;
c) préstito - desfile dos membros das entidades operárias, geralmente em conjunto com membros de outras entidades, nas ruas do centro da cidade (o que era mais comum). Durante a marcha era normal que, do interior do “préstito”, saísse uma comissão encarregada de levar saudações aos membros da imprensa quando o cortejo passava pela porta das redações dos jornais. Eram acompanhados por bandas de música pertencentes a corporações militares (raramente civis), dispostas entre cada duas entidades, de forma que cada entidade trabalhista se fazia acompanhar de sua banda de música;
d) comício - realizavam-se após as manifestações dos “préstitos” em praça pública, podendo haver a confluência de um ou mais cortejos para o local do comício;
e) atividades internas - podendo ser de três tipos: uma sessão solene - tipo comício - ou de caráter social - incluindo formas de lazer - ou, por vezes, uma combinação de ambas. Ocorriam à tarde ou à noite.
Estas atividades encerram um simbolismo profundo, uma LEITURA que o movimento operário fez na época da concepção da data. Elas representam a perspectiva de que o reformismo social fosse viável, tornando desnecessária uma ação contundente do operariado. Antes disso, a ação deveria se voltar para a busca de uma identidade entre a classe operária e a sociedade como um todo.
É justamente este conjunto de concepções acerca da questão social por parte do movimento operário que vai propiciar o tipo de LEITURA que segmentos majoritários no seu interior fizeram acerca do paradigma inicial vinculado ao 1º de Maio, que dará uma ênfase no aspecto de LUTO das comemorações.
A ida ao cemitério, como uma das formas de comemorar a data, é apenas a parte viva desta LEITURA; ela, na realidade, se manifesta em toda a amplitude do universo ideológico hegemônico no período. Neste, a expectativa de se lograrem modificações na questão social dentro da ordem estabelecida era a tônica dada pelo operariado. Por este caminho o 1º de Maio era a expressão das possibilidades de tais transformações, e dentro daqueles limites preestabelecidos.
Período de 1907 a 1922
A partir de 1907 as comemorações de 1º de Maio sofrem uma inflexão profunda em todas as suas manifestações, que passaram por uma profunda reelaboração.
As atividades matinais (salva de tiros e ida ao cemitério), diminuem visivelmente de intensidade, refletindo a mudança de caráter da LEITURA sobre o significado da data feita pelo operariado carioca. Mesmo que encontradas neste período, elas são cada vez menos uma atividade básica, se transformando numa reminiscência. Elas se tornaram ineficazes para a execução da perspectiva de LUTA dado à data a partir de então, que necessitava de um grande contingente de participação operária.
O estabelecimento da linha básica a ser seguida neste período foi dado pelo 1º Congresso Operário Brasileiro, realizado entre 15 e 20 de abril de 1906 no Rio de Janeiro, que tomou resoluções para estabelecer o significado inicial da data, retirando o caráter de “festa” que ela vinha tendo até então.
Esta foi uma resposta que o movimento operário carioca deu, resgatando o paradigma de LUTO-LUTA. Reafirma o LUTO, mas articulado com a LUTA, já que no período anterior o sentido de LUTO estava divorciado do de LUTA.
Amadurecia na sociedade brasileira a incompatibilidade entre as reivindicações operárias e a possibilidade de conquistá-las dentro das instituições implantadas pela República.
Cresce, então, a corrente anarco-sindicalista dentro do movimento operário brasileiro. Ela veio expressar a busca de novos caminhos pelo movimento operário, livrando-se de expectativas de transformações única e exclusivamente pela via institucional.
A forma de manifestar-se na data também sofreu radical transformação, com a valorização do comício público.
Acirrava-se a luta ideológica em torno do significado a ser dado à data. A grande imprensa procurava descaracterizar o sentido ‘luta de classes’ que o operariado imprimiu ao 1º de Maio após a realização do 1º COB, atribuindo ao 1º de Maio um sentido de festa e confraternização entre as classes.
A imprensa operária respondia com todo o vigor às tentativas de cooptação deste símbolo ao patri-mônio da ordem burguesa.
De uma forma geral, o operariado conseguiu sustentar o seu significado do 1º de Maio durante esta fase, desenvolvendo um rico conjunto de atividades culturais para este fim. Houve também a plena autonomia operária sobre as atividades programadas na data.
Os comícios mais expressivos nesta fase foram os que mais manifestaram um acirramento das lutas sociais. Os dos anos de 1912 e 1913 se centraram no repúdio à intervenção governamental nos meios operários pelo governo do Marechal Hermes da Fonseca e pela luta contra a carestia da vida. O de 1915 foi quase que exclusivamente dedicado à questão da guerra mundial, reivindicando ardentemente a promulgação da paz, pois as principais vítimas do conflito eram operários. Em 1919 ocorreu o mais expressivo comício operário de toda a história da República Velha. Sessenta mil pessoas tomaram a praça Mauá manifestando apoio à Revolução Russa, além das ocorridas na Hungria e na Alemanha. Após o ato inicial, formou-se um cortejo que desceu a avenida Central (atual avenida Rio Branco), cantando hinos operários.
Terminada a guerra iniciou-se um profundo processo de transformações nas relações institucionais do sistema capitalista. Era claro o temor da burguesia com situações provocadas pela guerra - incluída aí, principalmente, a Revolução Russa. Reformar era preciso, e esta reforma incluía uma mútua transformação, tanto do capital quanto do trabalho. Esta seria uma alternativa ao comunismo que poderia se fortalecer ainda mais nos meios operários europeus e americanos.
Ficava claro que era necessária uma intervenção do Estado em todas as dimensões da sociedade, e ainda mais solidamente no mundo do trabalho. A partir de então exigia-se um rompimento do liberalismo enquanto ideologia norteadora das práticas sociais. A perspectiva era de que se criasse um Estado interventor cujas ações encerrassem definitivamente a ‘questão social’ e afastasse a ameaça de revoluções operárias.
O ponto inicial desta nova política pode ser muito bem marcado na assinatura do Tratado de Versalles, em 1919, onde importantes princípios trabalhistas foram firmados. As influências destas transformações se fizeram sentir profundamente no cotidiano das classes sociais.