Os interesses imperialistas presentes na partilha do Sudão
Entre os dias 09 e 15 de janeiro deste ano, houve um referendo no sul do Sudão para decidir sobre a possível partilha deste país em dois: o Sudão, restrito à região norte, e o Sudão do Sul, cuja capital seria Juba. Os primeiros resultados publicados de uma votação que contou com 4 milhões de pessoas confirmaram a tendência de balcanização (mais de 90% favoráveis) apontada por diversas pesquisas de opinião. A consulta foi uma das determinações do Acordo Integral de Paz, assinado em 2005 na cidade de Naivasha (Quênia), entre o governo de Omar Al-Bashir e o movimento separatista Exército de Libertação do Povo do Sudão (SPLA), apoiado pelos Estados Unidos e pelas potências ocidentais de maneira geral.
Os motivos alegados pela chamada “comunidade internacional” – de fato, um clube formado pelas potências imperialistas e os regimes-títeres “aliados” – foram a pacificação dos dois grupos nacionais em conflito há mais de vinte anos: os árabes muçulmanos do norte e os negros cristãos e animistas do sul. Não se menciona, porém, que a seletiva campanha de demonização conduzida pelos Estados Unidos contra Cartum é motivada pelo fato de a região sul concentrar mais de 80% do petróleo do país (reservas estimadas entre 600 milhões e 1,2 bilhão de barris) e que, atualmente, 65% deste combustível vai para China. É certo que o governo de Omar Al-Bashir desrespeite os direitos humanos e seja profundamente corrupto, porém o mesmo é verdadeiro em países como Arábia Saudita, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. A única diferença é que estes são Estados clientelistas da grande potência da América do Norte e, por isso, nada se comenta a respeito.
No caso de se afirmar como um novo Estado, o Sudão do Sul enfrentará ainda algumas dificuldades: além de vir a ser um dos mais pobres do mundo, a ausência de lideranças políticas locais expressivas levará o país a ser um alvo fácil dos interesses das grandes potências, que continuam a atuar no continente africano a partir da antiga máxima do Império Romano “dividir para imperar”. O sul já abriga grandes refinarias dos países imperialistas, como a austríaca OMV e a francesa Total, mas novos grupos querem entrar na partilha, reduzindo a parcela chinesa, e as potências, de modo geral, desejam instalar suas embaixadas em Juba para consolidar sua dominação política. Por mais que se alegue que o novo país terá autonomia para decidir para quem venderá seu petróleo, o Sudão do Sul ainda dependerá muito, num primeiro momento, da estrutura de refino e do transporte ao Mar Vermelho feitos pelo norte do atual Estado unitário.
Outra questão, não menos importante, é que a divisão afetará comunidades que se encontram na futura fronteira, podendo dar lugar a novos e mais graves conflitos no local. A disputa por Abyei, por exemplo, uma bacia petroleira entre as duas regiões já se anuncia desde já. Segundo o acordo de 2005, esta população também deveria celebrar seu próprio plebiscito para decidir se prefere ficar de um lado ou de outro, mas, por falta de entendimento sobre os limites internos e os direitos de residência, a convocatória foi postergada. A zona, que já foi cenário de combates sangrentos entre norte e sul, é dividida entre duas nações principais: os agricultores negros dinkas e os pastores nômades messirias. Enquanto os primeiros são favoráveis à integração ao novo Estado, o líder dos últimos, Bishtina Mohammed El Salam, disse que seu povo não aceitará unir-se a um eventual Sudão do Sul, independentemente do resultado do referendo e, no caso de os dinkas quererem anexar Abyei ao sul, haverá guerra. Os dinkas ameaçam organizar por si mesmos um referendo, caso não haja acordo para tal.
Aliás, toda esta instabilidade e o estímulo ao nacionalismo foram construídos historicamente pelas potências imperialistas para fragmentar a região. Apesar de terem um discurso de repúdio aos conflitos em Darfur e no Sudão do Sul, Estados Unidos, UE e Israel participaram ativamente no treinamento, financiamento e armamento das milícias separatistas, além de terem ameaçado constantemente o país com uma possível invasão pela OTAN. De maneira análoga ao que ocorreu na Iugoslávia, a intenção de insuflar o nacionalismo tem como objetivo a completa fragmentação do país. Trata-se de um projeto existente desde o final da dominação imperial britânica. Não se pode esquecer que Sudão e Egito foram um mesmo Estado. Até a independência do primeiro, em 1953, houve um forte movimento para mantê-los unidos como um único país árabe. Os ingleses, porém, alimentaram o regionalismo sudanês contra o Egito, da mesma forma que insuflaram o nacionalismo do sul do Sudão contra o restante do país: os egípcios foram descritos, assim como hoje o são os sudaneses do norte, como os principais exploradores do Sudão. Apesar dos protestos egípcios, os britânicos mantiveram uma invasão militar ilegal no Sudão, mesmo depois da independência, para estimularem as disputas nacionalistas locais.
Por um lado, é certo que o regime do norte tenha tentado reiteradas vezes inundar o sul com professores árabes, clérigos muçulmanos etc para anulá-lo culturalmente e que, em 1983, Jaafar el Numeiry, além de ter tentado impor a “sharia” (lei islâmica) para todo o país, algo repetido pelo próprio Al-Bashir, dividira as províncias do sul com o objetivo de enfraquecê-las. Porém, por outro, a população atualmente está completamente mesclada e estimular o nacionalismo pode representar a continuidade, ou melhor, o recrudescimento do massacre. Na realidade, buscando estabelecer sua própria dominação, as classes dominantes do sul põem o governo de Cartum como principal responsável pela miséria da região e defendem o referendo como a solução para todos os problemas vividos. Como se constata, além de ser claro que a qualidade de vida não melhorará no sul, a exploração da população da região pode piorar com novos conflitos em potencial e a dominação previsível das grandes potências imperialistas ocidentais.
O analista Mahdi Darius Nazemroaya identifica este projeto de partilha como parte do Plano Yinon, desenhado pelas potências imperialistas ocidentais e por Israel, para assegurar a superioridade do país sionista a partir da fragmentação, e conseqüente fragilização, dos países árabes no Oriente Médio e no Magreb. É neste contexto que devem ser entendidos os recentes ataques a uma igreja copta (cristã) no Egito, também um país a ser repartido (embora seja aliado dos Estados Unidos, sua cisão auxiliaria o processo de divisão de Sudão e da Líbia), e os contatos profundos existentes entre o Exército Popular para a Libertação do Sudão (SPLM) e Israel.
Outro conflito de grande importância ficará relegado a segundo plano neste processo: Darfur. A região não pode ter solução semelhante, pois implicaria questionar fronteiras herdadas da colonização, aceitas amplamente pelos países da União Africana. Portanto, a tensão no local, a oeste do país, poderia ficar esquecida, já que há muitos países africanos, como Angola, Nigéria e Senegal, aos quais não interessa atender a demandas separatistas por enfrentarem os mesmos problemas internamente (respectivamente, com Cabinda, Biafra e Casamance).
Neste caso, é de grande importância retomar o pensamento de Joseph Stalin sobre a questão nacional expressado no livro Questões políticas: “daí a necessidade de que o proletariado apóie enérgica e resolutamente o movimento de libertação nacional dos povos oprimidos e dependentes. Isso não significa, naturalmente, que o proletariado deva apoiar sempre e de todos os lados, em todos e em cada um dos casos concretos, todo movimento nacional. Trata-se de apoiar aqueles movimentos nacionais encaminhados para debilitar, enfraquecer e derrubar o imperialismo e não de reforçá-lo ou mantê-lo. Costumam dar-se casos em que os movimentos nacionais de determinados países oprimidos chocam-se com os interesses do desenvolvimento do movimento proletário. Entende-se que nestes casos não se pode falar sequer em prestar-lhes apoio. O problema dos direitos das nações não é um problema isolado, um problema só por si, mas faz também parte do problema geral da revolução proletária, encontra-se inserido no todo e há de abordar-se do ponto de vista deste”.
A balcanização do Sudão, portanto, além de ter como objetivo atender os planos do imperialismo estadunidense e do Estado terrorista de Israel, vai de encontro aos processos de integração pan-arabista e pan-africanista, fundamentais para a auto-determinação dos povos no continente africano.