Ainda Estou Aqui

O filme de Walter Moreira Salles é merecedor de todos os elogios que têm recebido da crítica nacional e internacional, razão da conquista do Oscar de Melhor Filme Internacional, e especialmente do público brasileiro.

O filme de Walter Moreira Salles é merecedor de todos os elogios que têm recebido da crítica nacional e internacional, razão da conquista do Oscar de Melhor Filme Internacional, e especialmente do público brasileiro. Neste caso, não apenas pelas suas virtudes, dentre as quais a maneira de retratar a atitude de uma mulher que soube resistir amparando a família após o sequestro e assassinato de seu marido, mas pela coragem de quem soube enfrentar com dignidade e firmeza aquela situação.

A adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva é admiravelmente bem-feita, nada escapando de relevante, sobretudo dando oportunidade para que Fernanda Torres incorporasse a figura central do filme, Eunice Paiva, a mulher de Rubens Paiva e seus cinco filhos, cujo desempenho foi igualmente merecedor do Globo de Ouro e de sua indicação como atriz no Oscar. Figura central porque embora o deputado Rubens Paiva tenha sido o personagem vitimizado da forma que foi, a ponto de os seus algozes terem se livrado de seu corpo – como aconteceu em tantos outros casos similares -, o fato é que o filme ao retratar o livro relata o sofrimento aliado à resiliência de uma mulher que buscou o tempo todo a justiça do Estado brasileiro responsável pelo crime, que tardou mas veio anos depois.

Há, porém, mais do que tem sido dito em relação ao filme, que a essa altura já ultrapassou os cinco milhões de espectadores fora o quantitativo em outros países onde está sendo exibido, trata-se da exposição dos crimes de lesa-humanidade da ditadura. É esse o foco, que dispensa a denúncia explícita, porque a violência cometida pelos agentes do regime ditatorial é mais do que suficiente para demonstrar ao mundo esses fatos que se passavam no país do “milagre econômico”, período em que a repressão imediatamente após o A. I-5 foi incrementada.

Várias figuras de verdadeiros heróis e heroínas, como aqueles e aquelas que se expuseram para divulgar o que se passava no Brasil dos ditadores-presidentes, alguns dos quais e das quais ao assim se arriscarem tiveram o mesmo fim dos que eram barbaramente torturados nos porões da ditadura, como foi o caso da estilista e mãe de Stuart Edgar Angel Jones. Ambos assassinados pelo aparelho de Estado da ditadura. Este exemplo se soma a muitos outros, sem falar dos desaparecidos, que a Comissão Nacional da Verdade chegou a contabilizá-los.

O filme não retrata senão a combinação de um comportamento a aparentar obediência à uma ordem superior por parte de policiais militares e os maus-tratos dos que tiveram a experiência macabra de viver em locais onde funcionavam comandos e destacamentos militares, como o conhecido Quartel da rua Barão de Mesquita na Tijuca para onde foi levado o deputado Rubens Paiva e de lá nunca mais se soube de seu destino, e que na praça ao lado do referido quartel, local onde é hospedada a Polícia do Exército, foi erguido o busto do deputado, recentemente objeto de mais um ato de memória aos desaparecidos sem volta.

Penso e espero que esse filme se constitua no que denomino de fato gerador, isto é, da possibilidade de produzir efeitos que venham a trazer de volta a história dos anos de chumbo que perdurou por cerca de duas décadas de horror, e com isso, passar a limpo os males mais recentes de uma República que justifique o R maiúsculo para que se implante o regime da cidadania plena, com justiça social, respeito aos seus semelhantes, acatamento aos direitos fundamentais do ser humano, e da construção de uma democracia que faça jus a esse nome.

Que esse desejo venha a ser concretizado. Lembrando, contudo, que para ele acontecer depende da vontade de brasileiros dignos desse nome, dos que se sensibilizaram com o filme e se deram conta de que enquanto estivermos aqui é preciso reescrever a nossa história reescrevendo-a, porquanto omiti-la é também um ato de lesa-pátria. Logo, conhecer a realidade em que vivemos é fundamental para traçarmos o nosso destino.

Lincoln Penna