Carta do Leitor: Será que ninguém viu?

Carta de Samantha Oliveti. Contra a TV Globo, sobre o Rap e a cultura do povo

Carta do Leitor

Será que ninguém viu?

Por: Samantha Oliveti


Companheiros, vou relatar aqui um fato que muito me intrigou, não por ter ocorrido numa novela da TV Globo, mas por não ter ouvido sequer um lamento, uma reclamação, uma manifestação que seja, sobre o caso.

No dia 16/04/2001, fiz o que geralmente faço no meu cotidiano: saí para trabalhar, trabalhei o dia todo e fui em seguida para minha aula. Enfim, trabalhadora-estudante como muitos dos nossos. Eis que, não tendo aula à noite (fato raro) e necessitando adiantar algumas leituras, resolvi chegar mais cedo em casa. Não estou habituada a ver novela, nem gosto. Não sou hipócrita de falar que ninguém deveria gostar. Porém , como assisto ao Jornal Nacional, liguei a TV para esperar que a novela das 7 acabasse e começasse o programa que estava esperando.

Eis que, de repente, fui “abalada” por uma declaração da personagem vivida pela atriz Rosane Goffman: “Esse Rap não é música. É só um bando de homem falando com uma batida no fundo. Por isso, que eu não gosto dessa coisa. Prefiro meus sambinhas mesmo.”

Vamos analisar com calma o contexto em que tal personagem se apresenta: é uma empregada doméstica que, logicamente, sofre o processo de exploração mais árduo, que é o de cuidar de uma família de classe média alta como se fosse a sua, adotando filhos da dona da casa e a própria como se fossem seus próprios parentes, perdendo inclusive a sua própria identidade e individualidade. Sim, porque continua usando o elevador de serviço no imaginário que é passado subjetivamente ao público.

Antes que alguém fale alguma coisa, não estou aqui sendo discriminatória pelo fato da mesma ser uma empregada doméstica. Mas é com muito pesar que vejo empurrarem para os telespectadores uma personagem que não tem identidade porque assumiu os critérios de avaliação da patroa, ignorando sua origem e seu cotidiano e, conseqüentemente, desrespeitando a história de vida de muitas de sua classe (no sentido do trabalho)!!!

O que é realmente música para a TV Globo? Seria “É o Tchan” - que agora é funk, entre outros grupos que não me recordo o nome? E para nós? Por que aceitamos esse tipo de informação calados?

Será que é esse o ideário que a Globo quer passar ao público? De que Rap não é música? E que a música que deve ser escutada pelas camadas mais exploradas da população é aquela que, na verdade, não diz nada que não saibamos por conta própria, em nossas intimidades? E será que revelar nossas intimidades de maneira aberta é que é o correto? É incorreto utilizarmos a música e a cultura para denunciar essa exploração que tanto oprime a maioria de nós? Fazendo isso, deixamos de fazer música?

Agora sob a ótica de quem se sentiu ofendida e indignada com o comentário: Não é possível que ninguém da cultura Hip Hop tenha assistido a esse desastre. E se assistiu, por que ficaram calados? Mesmo o cara que fale que não assista novela, deve ter um amigo cuja mãe, ou namorada, ou avó deteste Rap que, aproveitando a frase, repreendeu-o dizendo: “Viu? Eu não disse? Rap não é música! Falou na novela!”

Será que Rap realmente não é música?


Samantha Oliveti