Sapienza: “Um projeto coletivo de vida”

Nesta edição, entrevista com Mariana Sapienza Bianchi, professora e diretora de teatro e membro do Andamia Colectivo Escénico (Quito – Equador) e do Seu Edgar Teatro & Cia (São Paulo – Brasil). Sapienza também é fundadora e coordenadora da Escola de Teatro Político de Quito. Desde 2009, e pesquisadora das artes cênicas em perspectiva crítica, com destaque para o Teatro do Oprimido de Augusto Boal e o Teatro Épico-Dialéctico de Bertolt Brecht. Estudou licenciatura em Arte-Teatro na UNESP, onde também realizou seu mestrado, com pesquisa sobre a metodologia teatral de Brecht. Como forma de seguir aprofundando as pesquisas neste tema, atualmente é doutoranda na FFLCH-USP. Também participou de diversas oficinas de formação em teatro e economia política.

Nesta edição, entrevista com Mariana Sapienza Bianchi, professora e diretora de teatro e membro do Andamia Colectivo Escénico (Quito – Equador) e do Seu Edgar Teatro & Cia (São Paulo – Brasil). Sapienza também é fundadora e coordenadora da Escola de Teatro Político de Quito. Desde 2009, e pesquisadora das artes cênicas em perspectiva crítica, com destaque para o Teatro do Oprimido de Augusto Boal e o Teatro Épico-Dialéctico de Bertolt Brecht. Estudou licenciatura em Arte-Teatro na UNESP, onde também realizou seu mestrado, com pesquisa sobre a metodologia teatral de Brecht. Como forma de seguir aprofundando as pesquisas neste tema, atualmente é doutoranda na FFLCH-USP. Também participou de diversas oficinas de formação em teatro e economia política.

INV – O que a levou a especializar-se no teatro de Bertolt Brecht?

MS – Bertolt Brecht, um dos maiores poetas e dramaturgos alemães do século XX, buscava com suas propostas teatrais contribuir com a luta de classes desde a perspectiva da classe trabalhadora revolucionária. Esse objetivo exige de nós, pessoas do teatro interessadas em construir um mundo melhor, muito estudo teórico, que possibilite análises da realidade de forma concreta e com vistas à prática, e também uma capacidade constante de plasmar tudo isso nas nossas práticas teatrais, na cena, nos processos coletivos, seja dentro do aparato teatral, trabalhando com profissionais, seja fora das instituições, em espaços de militância, estudantil etc. Para mim, particularmente, o desafio de manter uma atividade teatral constantemente preocupada com a realidade e o desejo de construir espaços coletivos onde o brincar e o refletir, o “eu” e o “nós” estivessem conectados encontrou na metodologia de trabalho de Brecht um caminho a ser trilhado, investigado, apropriado, utilizado a nosso favor. O dramaturgo alemão trabalhou incansavelmente, nas situações mais adversas, seja com escritos teóricos, ou na prática, para seguir desenvolvendo suas propostas para um teatro épico-dialético: um teatro que é divertido, alegre, prazeroso, e também crítico, demolidor. Esse trabalho, tanto na prática quanto na teoria, é um trabalho para toda uma vida, é um projeto de vida, mas nunca individual, sempre coletivo.

INV – Qual é a proposta de Brecht e por que continuar fazendo esta forma de teatro?

MS Brecht nunca escreveu uma sistematização fechada sobre sua metodologia de trabalho e a pessoa interessada em investigar suas propostas teatrais deve aventurar-se na leitura dos mais diversos escritos, seja em poemas, em ensaios, peças, diários de trabalho, textos inacabados e não publicados e muitos outros escritos, que se abrem como estrelas em uma constelação. Isso é interessante, porque revela que Brecht nunca deixou suas propostas estáticas. Todo o conjunto das produções do dramaturgo alemão estão em constante movimento, se contradizem, se superam, se afirmam, avançam e retrocedem – o autor, sempre atento aos movimentos da história ou, como diria Iná Camargo Costa, sempre atento às condições de temperatura e pressão da luta de classe, ajustava seus trabalhos às necessidades concretas e urgentes de seu momento. Mas poderíamos dizer que o que une toda a proposta teatral brechtiana é a busca por uma forma dialética de representação artística, em que, através do efeito de distanciamento, podemos mostrar que o que parece habitual na verdade é historicamente construído e, por tanto, transformável. Essa busca, investigação, é importante dizer, não é meramente estética, ou melhor, não é uma questão de estilo, de linguagem, de assinatura de direção. Essa metodologia, de colocar a dialética em cena para revelar a historicidade dos acontecimentos e dos comportamentos sociais, tem um objetivo concreto, prático e mira para fora do teatro: revelar os motores sociais de tal maneira que a realidade possa ser dominada e, assim, transformada. Essas propostas teatrais continuam tão necessárias e atuais quanto eram na época em que foi desenvolvida, pois ainda não chegou o momento em que o homem possa ser amigo do homem; ainda não superamos o capitalismo, a mercantilização da vida e das relações sociais, ainda não colocamos fim à exploração do homem pelo homem. E o teatro épico-dialético de Brecht tem justamente esse objetivo e pode contribuir para a superação do capitalismo, se utilizado de forma consciente e rigorosa.

INV – Como essa forma de fazer teatro de Brecht se encaixa no Equador?

MS – No Equador, continuamos vivendo um mundo de violência, exploração, expropriação e intensificação das ações da extrema direita. O capitalismo continua avançando e espalhando suas garras para todos os cantos possíveis (inclusive para dentro de nós mesmas) e, nesse sentido, o teatro de Brecht torna-se uma ferramenta muito útil na luta contra esse estado de coisas. O avanço da direita não é inevitável; a piora das condições de vida não é irresistível. E então, por que as coisas estão piorando? O teatro de Brecht nos obriga a fazer-nos perguntas e buscar respostas, ou melhor: hipóteses, para serem verificadas e debatidas com o público. Nesse momento, me parece que o teatro de Brecht é mais atual que nunca.

INV – Quais foram as obras encenadas e por que foram escolhidas?

MS – Aqui no Equador, a gente fundou um grupo de teatro que se chama Andamio Colectivo Escénico. A proposta desse grupo, para nós, era a de trabalhar tanto dentro dos aparatos teatrais, quanto fora; e também de misturar pessoas de diversas origens no final de 2021, estreamos três peças com elenco nacional e agora em abril estreamos outra na Colômbia; além de mais duas outras novas montagens previstas para 2024 – e também da “frente pedagógica”, onde coordenamos oficinas de teatro e música, com o objetivo de compartilhar ferramentas de teatro político.

A nossa peça de estreia foi uma versão inédita de “Milho para o Oitavo Exército”, que é uma dramaturgia que foi escrita por soldados do Oitavo Exército de Mao Tse-Tung e adaptada pelo Berliner Ensemble nos anos 1950, em Berlim Oriental, sob supervisão de Brecht. Essa foi escolhida como peça de estreia por diversas razões, mas sobretudo porque, primeiro, é uma comédia, e nós queríamos em primeiro lugar romper o péssimo clichê de que teatro político/crítico é chato. A peça também trabalha de forma totalmente dialética, tanto no texto quanto na cena, e acreditamos que isso rompe com qualquer dogmatismo possível. Por fim, essa peça também pode acabar-se tornando um modelo para montagens de teatro com militantes, em espaços não profissionais, já que nosso objetivo era justamente apresentá-la fora das instituições teatrais.

Depois dessa montagem, nós lançamos em dois outros projetos: a encenação de poemas e canções de Brecht, tendo como eixo condutor o processo de politização de Brecht em relação ao marxismo, a luta revolucionária no contexto do avanço do nazifascismo durante o governo social-democrata na República de Weimar e, por fim, a luta antifascista já no exílio. A encenação seguinte que fizemos foi a adaptação de Woyzeck, de Georg Büchner, que culminou na nossa peça “Ensayo para Woyzeck”. Com essa montagem, o objetivo era, por um lado, aproximar-nos de um clássico da literatura dramática ocidental e, por outro, usar esse texto de forma livre e criativa, para criar uma dramaturgia inédita que tivesse a nossa cara como coletivo e que também abarcasse as diversas características do elenco. Até agora, não fizemos uma encenação de dramaturgias de Brecht, porque me parecia que poderia ser mais frutífero, antes de tudo, que nós fôssemos conhecendo, que pudéssemos brincar mais livremente e que toda essa trajetória até agora fosse uma preparação, tanto teórica quanto autoral, para futuras montagens das peças do dramaturgo alemão.

INV – Qual a contribuição do teatro político nos processos de organização e resistência em nossos países, em um contexto de avanço da direita e extrema direita na região?

MS – O teatro de Brecht é um teatro altamente sofisticado, inspirador e contestatório. Exige de quem quer trabalhar com ele uma liberdade no pensar-fazer, pois é extremamente dialético. Não busca pontos fixos, mas justamente expor contradições, mostrar a realidade em movimento. Por isso mesmo, não há idealizações, nem em relação à classe trabalhadora. Acho que isso é que faz do teatro épico-dialético algo tão necessário para os dias atuais. A transformação da realidade é uma tarefa que cabe apenas à classe trabalhadora e, para isso, é necessária a difícil tarefa de analisar as contradições, de refletir sobre onde estamos ganhando, onde estamos perdendo, para onde aponta o horizonte, como criar esperança e alegria sem ser ingênuos etc. Além disso, muitas vezes o teatro pode tornar visível questões que não apareceriam através apenas de palavras, de debates – o jogo, o corpo, a voz, podem muitas vezes se tornar ferramentas úteis para trazer à tona questões dentro dos espaços de militância, que devem ser levadas em conta também (por exemplo, questões de machismo, racismo etc., que fazem parte da vida no capitalismo e não podem ser ignoradas).

INV – Finalmente, quais são as perspectivas para o futuro?

MS – Temos pensado muito sobre isso tanto dentro do Andamio quanto na Escola e essa é uma questão bem difícil de ser respondida neste momento, pelo menos para nós particularmente. A militarização do país é um fato que não pode ser ignorado e sabemos que é uma ameaça às pessoas que estão na militância, às defensoras e defensores da natureza, dos direitos humanos, da luta no campo e na cidade. Com o avanço da extrema direita no país e na região, se por um lado é uma tarefa fundamental avançar com os trabalhos, intensificar os processos de formação e de multiplicação, principalmente fora dos espaços da instituição teatral, buscar companheiros e companheiras e fortalecer a solidariedade no nosso lado do front, também sabemos que por outro lado as tarefas são arriscadas e a violação das nossas garantias básicas é algo que pode acontecer – que na verdade já está acontecendo, porque não param as notícias de pessoas que vão ao exílio porque temem por sua vida. De qualquer maneira, enquanto nós pudermos seguir trabalhando, seguiremos.

Fidel Viteri