Lula e a democracia (Xa parte)
Quando do encerramento da reunião dos representantes dos governos sul-americanos e da comunidade árabe, o presidente Lula participou de uma coletiva de imprensa na qual prestou esclarecimentos, como anfitrião do evento, acerca do teor do documento final. Indagado sobre a ausência da palavra democracia na Carta de Brasília, respondeu que num ambiente plural cada um tem o seu conceito de democracia. Driblou, assim, o mal-estar resultante de uma iniciativa que se propunha a unir esforços em torno de uma agenda própria, sem consulta prévia às grandes potências. Mas, a resposta dada por Lula criou mais dúvidas do que eventuais esclarecimentos.
Agendada com alguma antecedência, a reunião de Brasília ficou muito aquém das expectativas. Não contou com todas as lideranças mais expressivas dos países participantes, não foi discutida uma estratégia conjunta diante do quadro internacional, tanto no plano econômico como no político, que alinhasse seus membros, e, por fim, as diplomacias não foram suficientemente felizes para tornar a Carta de Brasília algo que pudesse marcar um momento de coordenação de esforços em prol de uma paz justa, eqüitativa e capaz de atrair novos parceiros para a empreitada de isolar a política imperial dos EUA. Se o governo brasileiro pretendeu salvaguardar as suas relações com o governo norte-americano, poupando-o de críticas no documento final, que não sediasse o encontro ou então se posicionasse clara e abertamente a respeito. Adotar uma postura de equilíbrio pode ser bom do ponto de vista da distensão no panorama mundial, quando este se encontra tenso, mas em nada acrescenta no que se refere a um encontro cujo objetivo é exatamente criar alternativas diante da forma como se posicionam os que comandam de forma absoluta as relações internacionais.
Mas, apesar dos reparos quanto à preocupação de Lula em não desagradar o governo dos EUA, não há como negar que o encontro de Brasília representou um passo na direção de uma retomada da então cognominada Política Externa Independente, que congrega o interesse da grande maioria das nações do mundo e que no Brasil foi interrompida abruptamente pelos governos militares pós-64. A resposta de Lula diante dos jornalistas na coletiva deve ser creditada, em parte, à precariedade de sua política externa voltada quase exclusivamente aos interesses de mercado e tímida quanto ao posicionamento diante dos grandes problemas internacionais. Assim, a única posição mais explícita de Lula no cenário mundial é convencer os demais membros da ONU da legitimidade da pretensão de ter o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da entidade. Se foi este o objetivo do governo brasileiro neste encontro de Brasília, a candidatura do país está mal das pernas, pois não conseguiu atenuar as contrariedades do governo argentino de modo a enfraquecer as relações entre os dois parceiros vizinhos. Se, no entanto, o objetivo foi o de demonstrar que o Brasil pode se tornar um membro de maior peso no cenário econômico mundial, a escolha foi ruim. Ao Brasil, como aos participantes do encontro, o que deve valer é a determinação de alterar a lógica do mercado imposta pelo neoliberalismo. Querer partilhar dessa lógica é admitir que não há saída para os países emergentes senão a reprodução sempre em escala menor do modelo das grandes economias capitalistas.
A liderança no continente implica em atitudes bem transparentes em relação a determinadas situações. E é aí que reside a questão essencial: onde se encontra mais bem representada a democracia? No sistema representativo, e em instituições carcomidas de interesses corporativos, patrimonialistas e avessas a quaisquer mudanças substanciais; ou no legítimo e consagrado desejo do povo, cujas urnas proclamam a vontade de transformações que o torne um real protagonista de sua história? Tem sido demonstrado que o discurso de defesa dos valores institucionais nem sempre são os que melhor definem o significado de democracia, haja vista a situação norte-americana. As barreiras institucionais aprisionam os eleitores massacrados pela mídia eletrônica a escolherem uma das bandas de uma mesma casta política e social, isto é, ou se vota em republicanos ou em democratas. O capitalismo revela, assim, a sua incompatibilidade com a democracia, a democracia de massas, socialmente justa e distributiva. Essa democracia é que deveria ser mencionada na Carta de Brasília, não a que é defendida pelo sistema norte-americano. E se a democracia é plural assumamos o lado popular sem receios de retaliação.
É claro que a outra forma de representação democrática nem sempre é a mais eficaz, no sentido de garantir direitos e deveres a toda a sociedade. Geralmente, essas representações “diretas” não se caracterizam pela elevação do bem-estar social e tampouco pela superação de obstáculos históricos que mantêm certas sociedades em desníveis enormes entre seus estratos sociais. Têm, no entanto, uma vantagem sobre as que se escoram no princípio da institucionalidade: é que são mais ágeis na implementação de medidas necessárias de acordo com os seus dirigentes, embora paire também a dúvida se essas medidas são realmente de interesse do povo. Alguns dos regimes árabes não são efetivamente representativos desses interesses. Geralmente são grupos familiares, fechados e avessos à participação das massas, tendo, contudo, contradições objetivas com os grandes interesses multinacionais. Os representantes desses governos certamente não estão de acordo com a lembrança, ainda que protocolar e formal, do termo democracia num documento público. Os responsáveis pela elaboração do texto final não titubearam em simplesmente retirar a menção à democracia, pois convencidos estavam de que o que une os participantes é o desejo de encontrarem soluções que passem ao largo de imposições ditadas pelas grandes economias mundiais.
A possibilidade de se identificar variadas formas de sociedades democráticas a coexistirem num cenário agora mais unificado pela mundialização, não quer dizer que a cada sociedade deve corresponder um conceito de democracia, como fez entender Lula. Ela não é tão volátil assim. Há sim um princípio básico e norteador para que se defina a democracia: se um regime político é democrático este regime deve ser conduzido exclusivamente com base nos interesses populares. São estes interesses que devem guiar e dar sentido às medidas de um governo que saiba traduzir esses interesses. De modo que criticar a ausência do termo democracia na Carta, como fizeram os que se sentiram alijados do encontro, é um subterfúgio pleno de hipocrisia porque, na verdade, o que os incomodou foi o fato de iniciativas desse tipo não integrarem mais as grandes potências, situação nova nos tempos neoliberais.
Contudo, Lula perdeu uma excelente oportunidade para dizer ao mundo - o número de correspondentes de imprensa era bastante significativo - que a política que o levou à presidência do Brasil pautou-se na convicção de que só os interesses populares fazem uma sociedade ser democrática. Subordinar esses interesses à guisa de pôr ordem na gestão financeira é ficar inteiramente refém da ciranda que movimenta a lógica do capital. Era importante que Lula deixasse claro que as dezenas de chefes de Estado e de governantes do mundo árabe e da América do Sul não haviam acorrido ao encontro de Brasília apenas para viabilizar melhores parcerias comerciais. Para isso, existe a Organização Mundial do Comércio e as ações diplomáticas. Quando se reúnem duas comunidades de países com as diversidades histórico-culturais tão acentuadas é porque há uma vontade política suficientemente forte para deixar clara a divergência com a política dos países que comandam, com os EUA à frente, as relações internacionais na atualidade.
Assim, a resposta de Lula aos jornalistas que o entrevistavam não foi feliz. Afinal, era sabido que os representantes do mundo árabe quiseram deixar claro que o termo democracia, tão usado no sentido de configurar um modo de vida americano, não podia ser aceito pela comunidade árabe que tem sofrido tanto com a presença em seu território dos interesses abusivos dessa “democracia americana”. Tentar disfarçar o mal-estar alegando que a democracia é um conceito relativo não explica a ausência do vocábulo no documento final, e perde a chance de deixar claro que o entendimento da democracia principia pelas necessidades vitais dos cidadãos e não de forças econômicas vinculadas a interesses bélicos e petrolíferos, que combinadas acionam a política de agressão de Bush. Era preferível qualificar a democracia diferentemente do discurso de Washington, ainda que pudesse desagradar o governo norte-americano, do que não explicar a não referência da democracia no documento e não dizer por que razões ela não foi incluída.
Era possível - se houvesse uma dose maior de interesse por parte dos membros signatários do encontro, - chegar-se a um texto final que pudesse esclarecer essa questão da democracia. Era importante que as forças sociais interessadas na mudança do mundo não perdessem esse momento histórico, não apenas simbolizado pela aproximação de duas regiões no mundo com interesses convergentes, mas pela necessidade premente de não se perder a batalha das idéias ou das ideologias, onde a instrumentalização do conceito de democracia ocupa um lugar precioso para os estrategistas do Departamento de Estado norte-americano, núcleo que representa no campo da ação militar os interesses do grande capital sob o comando dos EUA. A democracia no discurso oficial pode ser plural e ser, portanto, entendida desigualmente, mas no que se refere à realidade concreta, a democracia que o mundo deseja é a democracia social e que rejeita, por princípio, as mazelas do capitalismo. A democracia do faz de contas é o sistema do engodo. É no terreno da disputa ideológica entre as formas de realização democrática que é preciso marcar as diferenças, jamais aceitando como fato consumado o consumismo norte-americano como modelo para os povos em busca de realização plena e substantiva.
Lincoln Penna