Viva Leonel Brizola!

A súbita morte do ex-governador Leonel de Moura Brizola, no Rio de Janeiro, constitui-se num acontecimento importante para o processo político nacional; o presidente Lula decretou luto oficial de 3 dias em todo o país e o corpo foi velado no Palácio Guanabara, sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Este fato não decorre apenas pelo impacto na opinião pública, em todo o país, em especial, no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, criando aquele senso comum nas massas de “mea culpa” e que, certamente, influenciará no resultado das eleições municipais; ele também se observa nos debates em torno do significado histórico de Brizola para a política nacional, nos centros políticos burgueses, pequeno-burgueses e do movimento operário. Desta forma, um rosário de declarações apareceu na mídia nacional e internacional, enunciando declarações de apreço e sentenças quanto ao significado histórico da morte de Brizola, afogando a comoção popular real num poço de frases feitas, oportunistas e traiçoeiras que, com um pouco de imaginação metafísica, faziam o falecido se contorcer no caixão registrando os últimos golpes e traições à sua memória, vida, luta e história.

A Rede Globo, não deixou por menos, fez a cobertura do acontecimento durante os três dias em que se estenderam as “solenidades fúnebres”, ao curso das imagens das multidões que se espremiam e ficavam horas nas filas para darem o último adeus ao morto, iam se sucedendo os depoimentos da governadora “Rosinha Garotinho”, sempre com os olhos lacrimejantes e de seu secretário de Segurança, o ex-governador Anthony Garotinho, eleito pelo PDT e hoje no PMDB; em seguida, o prefeito do Rio César Maia, também eleito pelo PDT, hoje no PFL; logo após, o depoimento do ex-governador Marcello Alencar, também eleito pelo PDT e hoje PSDB, todos traíram Brizola e se passaram para o lado do inimigo. Após esta “avant premiérè”, veio o último e contundente depoimento: Luis Inácio Lula da Silva, atual presidente da República apoiado por Brizola, mas que nos últimos meses vinha sendo fortemente criticado por abandonar o programa compromisso de campanha no que se refere a mudança do modelo econômico do país. Claro que a mídia também abriu espaço para o depoimento de seus principais adversários políticos como o ex-governador Moreira Franco, “o gato angorá”; o ex-presidente José Sarney; o ex-governador e atual senador Antônio Carlos Magalhães; o ex-vice-presidente Marco Maciel; até mesmo o senador Jorge Bornhaunsen, presidente do PFL, teve a palavra.

Mas isso não era tudo, como matéria de fundo uma síntese biográfica do ex-governador Brizola era apresentada, que ia de sua infância paupérrima, de engraxate nas ruas de Porto Alegre, seu ingresso na faculdade de engenharia; em seguida, falam de sua entrada no cenário político no bojo do furacão da reeleição e a trágica morte de Getúlio Vargas; o casamento com a irmã de João Goulart, a eleição a prefeito de Porto Alegre e a governador do Rio Grande do Sul. Assim como o episódio da rede da legalidade para sustentar a posse de Goulart após a renúncia de Jânio Quadros; a eleição a deputado federal, pelo Rio de Janeiro, e sua ascensão à liderança da luta pelas reformas de base no governo de Jango. Com o golpe, sua cassação e a resistência através da luta armada, o exílio no Uruguai, daí para os Estados Unidos e Europa; ingressa na Internacional Socialista (social democracia); o regresso ao Brasil, a perda da sigla PTB para Ivete Vargas e a formação do PDT, a eleição a governador pelo Rio de Janeiro, o caso da PROCONSULT, onde a Globo se exime da responsabilidade, embora somente após a denúncia de fraude Brizola tenha sido declarado vencedor, e o esquema para dar a vitória a Moreira Franco, desmoralizado. Finalmente, o release biográfico fala dos desafetos: César Maia, Marcello Alencar, Garotinho, até chegar a Lula, onde enfatizam sua posição crítica.

Quem tomou conhecimento da história de Brizola por esta campanha da mídia, sem dúvida, jamais compreenderia porque o ex-governador tanto combateu e denunciou a Rede Globo e as oligarquias no país, bem como sua luta incansável contra o imperialismo. Muito menos entenderia porque em sua biografia há uma total exclusão de sua aliança com os comunistas, claro que, historicamente, há um nível de nacionalismo que vicejou todo o processo de formação da América Latina. Ele mesclou a rebeldia das classes médias européias, oprimidas pela opressão feudal e premidas pela ambição de lucros, com as raízes culturais e históricas de povos e civilizações seculares e que até a conquista viviam soberana e independentemente da Europa. Este fato consubstanciou um nacionalismo de conteúdo próprio às idéias de igualdade, justiça social e liberdade, distinguindo-se do fundamento filosófico europeu. Mas, apesar desta diversidade semiótica das relações sociais e da cultura própria desenvolvida na consumação destas, é fato que os ideais do socialismo, seja em sua versão mais revolucionária ou reformista, tomavam parte desta composição ideológica: o ideário trabalhista como parte do nacionalismo criou esta mescla, ao passo que o fundamento da soberania e liberdade dos povos e civilizações pré-existentes ou transplantadas para este continente, alimenta o componente antiimperialista.

Sendo assim, mais que uma mera referência é importante notar a ausência deliberada da mídia de cortar os vínculos históricos entre Brizola e os comunistas no país. Quem viu Luis Carlos Prestes, na campanha eleitoral para presidente em 1989, afirmar: “confio inteiramente em Brizola e empenho todo o meu apoio; ele é o único político nacional capaz de defender o povo e derrotar as oligarquias no país!”, há de compreender que a omissão da mídia foi dirigida para ocultar ou mesmo apagar uma peça importante na história de Brizola. O mesmo se verifica em relação aos seus laços com Getúlio Vargas, do qual extraiu todo o conteúdo de sua luta nacionalista. Brizola fez valer a “Carta Testamento” de Getúlio, não com exaltações ou declarações oportunistas, mas, sobretudo, com ações, como a encampação da ITT e Bond and Share. Quando governador do Rio Grande, abriu caminho para o que mais tarde veio a se converter na Telebrás; o mesmo que fez Getúlio Vargas com o aço, o silício e o petróleo. É claro que, no campo do trabalhismo, Brizola projetou esta luta nas reformas de base, onde a reforma agrária era carro-chefe, inserindo a parte dos trabalhadores que até então não tinham reconhecimento formal, os sem-terra; primeiro no Rio Grande e depois em todo o país, como se pode comprovar pela força das Ligas camponesas. Sem dúvida, o movimento pelas reformas de base elevavam o trabalhismo e o nacionalismo do caminho reformista ao patamar do socialismo.

Com o retorno ao Brasil, após o exílio, Brizola tentou restabelecer esta aliança histórica, mas, nem mais o PTB era o mesmo, nem mais o PCB, ambos foram trucidados pela ditadura militar de 1964. Brizola tentou juntar os cacos no PDT, Prestes preferiu ficar só, mantendo apenas vínculos de amizades, compromissos morais com amigos e simpatizantes e sua frase preferida era: “não temos quadros revolucionários para construir o Partido”. No ato de comemoração dos 90 anos de Prestes, realizado na UERJ, Brizola traçou um paralelo entre sua trajetória e a de Prestes, concluindo que ambos ficaram sem os seus respectivos partidos: “eu sem o PTB e você sem o PCB”. E diante desta nova realidade, mesmo tendo o apoio popular, Brizola jamais reeditou seu movimento pelas reformas de base, o trabalhismo já era outro e o nacionalismo idem; de ambos os campos só o que obteve foi traição e golpes, os poucos quadros que sobraram das lutas passadas foram ficando pela estrada do tempo, Darcy Ribeiro, Doutel de Andrade, Adão Pereira Nunes, Bayard Boiteux, mesmo Prestes, após a campanha de 1989, também se foi. E, na medida que se iam os bravos, os que ficavam já não conseguiam proteger o organismo dos vermes, e o movimento liderado por Brizola ia se complicando. A traição era inevitável; diz-se que quando um navio afunda os ratos são os primeiros a pularem fora, e assim foram se revelando o oportunismo e golpismo: Saturnino, Marcello Alencar, César Maia, Garotinho, um atrás do outro. Brizola se tornou alvo da traição e do oportunismo, parece que uma modalidade de fazer política estava terminando, onde idealismo definia a lealdade e a coragem, seja na esquerda ou mesmo na direita.

Com isto, Prestes parece ter acertado em cheio: “faltam os quadros!”. Brizola foi vítima deste processo histórico, em que mudam as relações sociais e com elas o sentido histórico destas relações e, portanto, o próprio ser social que atua sobre esta matéria. Eis a herança da ditadura no Brasil, e talvez isto explique um pouco a situação difícil que atravessa a luta revolucionária da classe operária no mundo: a destruição mecânica da dialética das transformações objetivas e subjetivas numa sociedade historicamente determinada, como dizia George Politzer. É claro que ficamos aqui entre a encruzilhada filosófica de saber até que ponto a mecânica não passa de uma dialética nacional, como afirma a tese de Alberto Schwartz em “As idéias fora de lugar: Um mestre na periferia do sistema”. Contudo, uma coisa é certa, se Darcy tem razão em sua tese da “interação étnica”, embora o movimento pelas reformas de base seja “idéias fora de lugar” ou realidade subjetiva que não acompanha a realidade objetiva, ele cedo ou tarde ressurge como essência de um processo nacional ou da sociedade historicamente determinada, como queiram, que ainda luta por firmar sua identidade e que necessariamente exigirá um desdobramento. Portanto, uma civilização por se fazer, ou melhor, por se refundar. E neste momento, nunca a história foi tão irônica, pois se a fala dos traidores não passa de “elogio ao morto”, o silêncio dos revolucionários torna a vida uma prática; assim se entende a discrição nos pronunciamentos e real sentimento dos familiares e os poucos bravos que restaram e expressam o conteúdo último a que chegou o movimento pelas reformas de base, do nacionalismo e trabalhismo de Brizola: os direitos sociais e humanos, o socialismo, como bem demonstrou em seu governo entre outras ações, a construção dos CIEPS (Brizolões) e a política dos Direitos Humanos e da Saúde, como tônica da Segurança Pública. De todo o edifício desmoronado restaram ainda alguns pilares em condições de reconstituir a luta sobre novo patamar, no município do Rio de Janeiro, é o ex-vice-governador de Brizola no estado e eminente jurista defensor dos direitos humanos: Nilo Batista. A ele impetramos todo nosso apoio e solidariedade, que os bons se reúnam a este homem de ação e palavra.

Rio de Janeiro, 1 de julho de 2004. P. I. Bvilla Pelo OC do PCML