Moysés Vellinho

Em 1989, Olívio Dutra, então prefeito de Porto Alegre, opôs-se inutilmente ao projeto de batizar o arquivo histórico de Porto Alegre com o nome de Moysés Vellinho. A razão do veto devia-se ao caráter elitista, racista e misógina da produção historiográfica do patrono proposto. Com o transcurso do centenário do nascimento de Vellinho, renasce o interesse e a polêmica sobre sua visão do passado sulino.

Moysés Vellinho

Por: Mário Maestri



Em 1989, Olívio Dutra, então prefeito de Porto Alegre, opôs-se inutilmente ao projeto de batizar o arquivo histórico de Porto Alegre com o nome de Moysés Vellinho. A razão do veto devia-se ao caráter elitista, racista e misógina da produção historiográfica do patrono proposto. Com o transcurso do centenário do nascimento de Vellinho, renasce o interesse e a polêmica sobre sua visão do passado sulino.

Apesar de ter escrito sobre literatura e participado da política, Vellinho destacou-se como historiador. Hoje, a 20 anos de seu falecimento, em 26 de agosto de 1980, sua obra histórica revela-se despida de qualquer cunho científico. A bem da verdade, deve ser classificada como literatura historiográfica trivial de cunho apologético, devido ao seu conteúdo e à despreocupação com as técnicas, os métodos e as fontes históricas.

Três livros destacam-se na produção sobre a história sulina de Vellinho: O Rio Grande e o Prata: constrastes; Capitania d´El Rei: aspectos polêmicos da formação rio-grandense e Fronteiras. A grande tese dessas obras é a essência limpidamente luso-brasileira das raízes históricas sulinas; a inexis-tência de identidade com os irmãos “platenses”; a brasilidade e superioridade do gaúcho sul-rio-grandense sobre o platino.

Em O Rio Grande e o Prata, Vellinho apresenta o gaúcho platino como produto da miscigenação degradante de espanhóis, índios e negros. Sob o tacão arrogante da elite espanhola, esse mestiço teria se transformado em um ser “sem paradeiro” e “sombra de disciplina social”.

O caudilho e a oposição entre a cidade, centro de “civilização”, e o campo, reino da “barbárie”, seriam constantes essenciais do passado uruguaio e argentino. Para Vellinho, o campo seria “o território em estado de rebelião contra a cidade”, onde “a ralé campeira” aglutinava-se “obscuramente em torno do caudilho.”

Para esse intelectual e funcionário do Estado Novo, o gaúcho sul-brasileiro seria a antítese do ente anti-social dos pampas castelhanos: “[...] os fundadores e povoadores da antiga Capitania d´El-Rei não revelaram a menor disposição para os rasgos de violência geradores do estado de tensão e revolta [...].” Entre citadinos, estancieiros, capatazes e peões reinaria a mais total concórdia. Ao contrário do oriental, o gaúcho sul-brasileiro, verdadeira fonte de virtudes laborais, distinguiria-se pelo “constante serviço ao rei” e aos “interesses da estância a que se achava agregado.”

Vellinho teve acesso à volumosa documentação, editada e inédita, sobre os magotes de gaúchos gaudérios que vagavam pelos pampas sul-brasileiros, negando-se a trabalhar permanentemente nos campos recém-apropriados pelos estancieiros apaniguados da Coroa. Em geral, viviam do abate clandestino do gado pelo couro e pela carne. Entretanto, desconheceu esta realidade.

Em 1823, o charqueador português Gonçalves Chaves anotou em suas Memórias ecônomo-políticas: “[...] há [...] pouco escrúpulo em matar reses para comer andando em viagem e tomar cavalos sem consentimento [...]. Quando algum é colhido em flagrância [sic][...] o castigo é sempre arbitrário e o ladrão, solto em poucos dias [...].”

Em 1830, o presidente da província propunha que os “homens criminosos”, “vadios”, “vagabundos”, “viciosos”, que pululariam no Sul, “sem ubi certo”, atentando contra a “segurança individual e a propriedade”, fossem “remetidos para o serviço da Esquadra” ou outro qualquer.

Segundo Vellinho, a diferença essencial entre o gaúcho platino e o sul-brasileiro seria sobretudo racial: “[...] o componente indígena se apresenta [...] como elemento fortemente diferenciador no confronto entre os dois tipos históricos do Prata e do Rio Grande do Sul.”

Vellinho propunha uma origem eminentemente pura para os primeiros ocupantes do Continente de São Pedro. “[...] o Rio Grande do Sul é, desde as raízes até a construção de sua legenda heróica, fruto de uma laboriosa empresa exclusivamente luso-brasileira.” [1975, 200]. Para comprovar sua tese, negou também a contribuição essencial do africano escravizado à sociedade sulina, desde antes da ocupação oficial da região, em 1737.

Em Fronteira, o negro é um absoluto ausente. Nas 235 páginas de Capitania d’El Rei, são dedicadas onze linhas ao cativo! Entretanto, até os anos 1880, o Rio Grande esteve entre as principais regiões escravistas do Brasil. O primeiro levantamento demográfico conhecido, de 1780, registra que 29% dos habitantes oficiais da região eram cativos! Se juntarmos a eles africanos e afro-descendentes livres e libertos e nativos semi ou plenamente aculturados, teremos população mestiça, no mínimo, próxima da maioria! Ou seja, o autor ignora praticamente metade da população sul-rio-grandense da época!

Vellinho apresenta as razões de sua faxina étnica: “Acresce que a rala população do Rio Grande daquele tempo não poderia receber sem grave prejuízo para as tendências eletivas de sua elaboração sociográfica a introdução repentina de um contingente maciço de índios inteiramente desarvorados [sic].”

Também neste relativo, falsifica dados históricos que conhecia. Além da incorporação incessante de nativos pampeanos e guarani-missioneiros às fazendas sulinas, o Rio Grande conheceu “introdução repentina” de multidões de americanos. Em 1757, quando a população luso-brasileira era minúscula, as tropas lusitanas recuaram das Missões arrastando consigo milhares de missioneiros que foram fortalecer e fundar povoações e trabalhar nas estâncias.

Vellinho não era apenas racista. Defendia também as exóticas e macabras teorias eugênicas. O ameríndio seria sub-raça capaz de sobreviver à natural extinção apenas através da mestiçagem com a raça “superior”: “[...] os missionários não puderam fugir à acabrunhadora conclusão de que as sucessivas gerações de índios [...] pertenciam a uma raça irrecuperável [sic], em franca regressão histórica! Parece que só havia uma alternativa para de certo modo resguardar a sobrevivência do sangue indígena – o cruzamento com o branco.”

Durante a II Guerra, as teorias darwinistas sociais apoiaram ideologicamente as propostas de ‘seleção racial’ que resultaram no genocídio nazista, defendido como mera aceleração voluntária da tendência de predomínio das raças superiores sobre as inferiores, fadadas natural e inexoravelmente ao desaparecimento.

As enlouquecidas hierarquiza-ções raciais de Vellinho levam-no a aplaudir o genocídio das populações missioneiras como profilaxia étnica inevitável: “Preando índios e escravizando-os – àqueles bárbaros [sic] que viviam em guerras permanentes e devorando-se uns aos outros – os colonos se limitavam a cumprir uma lei da vida.”

Vellinho é também misógino. Para ele, a mulher inexiste como protagonista, aparecendo, apenas, aqui e ali, na forma estereotipada da esposa submissa voltada à função procriadora: “[...] mulheres graves e caladas, a esperar, sempre a esperar, desafiando o tempo e ouvindo o vento, enquanto os homens, sob as armas, velam nos postos de fronteira.”

Vellinho não se debruça sobre a documentação para desvelar a essência do passado. O conhecimento da história a partir das suas contradições sociais e econômicas profundas é substituído por leituras irracionais e míticas apoiadas em critérios raciais e em heróis providen-cialistas.

Em Capitania d’El Rei, Rafael Pinto Bandeira é descrito como personagem histórico possuidor de todas as qualidades e despido de qualquer defeito. Numa fusão mani-queísta da essência e da aparência, Vellinho amua-se porque à galhardia espiritual do seu prometeu dos pampas não corresponda igual garbo físico!

Diante dos raros retratos da época que apresentam seu demiurgo sulino como “cavaleiro gordo e canhestro” que “aos 50 anos” já necessitava de “banquinho para montar”, “desafia” os artistas plásticos a criarem iconografia digna do personagem mítico que propõe. Qualquer coisa como espichar Napoleão de uns 30 cm. para deixá-lo à altura dos feitos militares dos exércitos franceses!

Não é arbitrária a alquimia racial de Vellinho. A partir da ignorância do negro escravizado, do nativo aculturado, da mulher submetida; com a justificação do extermínio dos nativos missioneiras, pampeanos e jês, escamoteia as contradições que geraram a sociedade sul-brasileira. Procura, em fim, alicerçar o mito fundador da sociedade sulina: sua produção a partir de uma democracia pastorial, naturalmente hierarquizada e isenta de contradições entre cativos e senhores, gaúchos e fazendeiro, capital e trabalho.

O transcurso dos 100 anos do nascimento de Moysés Vellinho deve oportunizar o estudo e expurgo das insidiosas influências que suas interpretações, apenas despidas das arestas mais abjetas, exercem ainda na historiografia e nas visões sobre o passado sulino. Constitui também momento para que se reivindique que o Arquivo da capital seja rebatizado com nome que não afronte a memória dos africanos e nativos que construíram com dor e trabalho a sociedade sul-rio-grandense.