Contracenando com a Polícia; qual a trama?

 

A crise nas polícias militar e civil nos vários estados do país protagonizou fatos, como os de Tocantins, Bahia e Paraná, e continua a fazê-lo em Pernambuco e Alagoas roubando a cena política nas últimas semanas eclipsando o crescente processo de lutas operárias e populares contra o governo corrupto das oligarquias. Com isto, permitiu o espaço para uma manobra do Planalto visando impedir uma possível unidade entre os movimentos populares e os setores progressistas e nacionalistas das FFAA numa ação conjunta pela derrubada de FHC. A crise também trouxe de volta a polêmica sobre a constitucionalidade ou não da intervenção das FFAA na segurança pública interna do país, com base no Artigo 142 da atual Constituição, que define as bases para uma intervenção.

 

 

A polêmica criada com a crise das polícias foge muito ao que parecia ser mais um movimento de caráter reivindicativo e normal a um setor esmagado pela política neoliberal do Governo, num país em crise econômica e política; ela arranha feridas abertas durante a ditadura militar que ainda não foram saradas, mas pelo contrário realçadas na transição na forma de governo para a democracia burguesa. As ações orquestradas nos vários Estados, onde se viram policiais de armas nas mãos e ocupações de quartéis pela população civil (escudos humanos), fizeram muita gente se recordar do movimento dos marinheiros que preludiou o Golpe de 1964. Desta forma, a crise se afastou muito de uma mera reivindicação de protesto, se constituindo em rebelião militar e pretexto para o governo lançar mão das FFAA na segurança pública, com base no Artigo 142 da Constituição e, sobretudo, avançar no seu Plano de Segurança Nacional ditado pelos EUA. Parece desnecessário dizer o vínculo que existe entre este e o Plano Colômbia. Mas para os desavisados, que fique claro, o Plano de Segurança Nacional de FHC cumpre a lógica de "combate ao narcotráfico" com base na doutrina atual do Pentágono, que é rebaixar as FFAA ao papel de polícia, tipo o Panamá, servindo apenas de força auxiliar às FFAA norte-americanas e suas manobras no continente.

 

 

Alertamos para este fato, porque já assistimos a este filme dos movimentos reivindicativos das polícias várias vezes, inclusive no âmbito da própria Polícia Federal e do ex-SNI, hoje ABIN; mas, em nenhum deles, o caráter do movimento fugia ao contexto de crise econômica e política, jogando o país nos traumas da transição, como ocorreu desta vez. Repito, só se viram movimentos similares durante a década de 20 do século passado, ou no curso dos anos 50 e 60, preludiando o Golpe de 64. Naturalmente que ao lado do processo de transição da ditadura para democracia burguesa, constituiu-se uma contradição ainda maior que os traumas políticos criados com a Ditadura. E o pior deles é a inserção do Brasil no processo de globalização neoliberal internacional, onde toda uma doutrina militar se desenvolve hierarquizando os Exércitos pelo desenvolvimento econômico do país e capacidade tecnológica. Nela, a hegemonia militar mais que convencimento é uma relação de forças concretas. Compreender este fato é uma chave para se entender até que ponto o braço militar do Estado capitalista no Brasil - o setor que defende a propriedade privada e o domínio de classes - é afetado pela política neoliberal.

 

 

Mas, se a política neoliberal explica a crise das polícias, mostrando que sua natureza vai além da questão salarial e chega mesmo à concepção do papel de braço militar do Estado capitalista dentro da ótica do Estado mínimo (que ao invés de diminuir a importância da polícia, a aumenta ao ponto de trazer as FFAA para este papel causando as contradições entre os setores militares); não explica, por outro lado, porque justamente este setor é o que tem menos legitimidade e credibilidade para receber o apoio do povo em suas reivindicações. Aqui a explicação vai além da percepção imediata das massas sobre o significado da polícia para ela: "por que armar, treinar e pagar bem a polícia? Para achacar e matar na primeira blitz, como foi o caso da Favela Naval em SP? Ou espancar, chacinar na primeira greve ou protesto contra o Governo e seus patrões, como foi o caso dos trabalhadores da Novacap no DF, e dos Sem-Terra em Eldorado dos Carajás? Hoje a classe operária tem pavor tanto da polícia quanto do bandido, não se sabe a diferença entre um e outro, a não ser que alguns têm e outros não têm licença para assaltar, estuprar e matar. E que quanto mais equipam a polícia, equipam também os bandidos. Esta é a mesma percepção que confere aos militares a mesma base degradante de legitimidade e credibilidade pelas massas. Afinal, quem é o responsável por tanta opressão, terror e corrupção hoje no país?

 

Assim, as particularidades da crise também vêm à tona e só podemos compreendê-las quando nos debruçamos sobre a doutrina de segurança nacional adotada pela Ditadura Militar no Brasil. Foi esta doutrina que atribuiu às polícias civil, militar e corpo de bombeiros (menos atingido por causa da sua atividade) o papel de forças auxiliares das FFAA, e a passagem dos comandos corporativos para escalões do exército integrados aos Doi Codi. Neste contexto, a doutrina de segurança pública, como derivação da doutrina de segurança nacional, transformou o crime comum de alvo principal em alvo secundário e até mesmo aliado, como o caso dos contraventores (jogos de azar), do sistema contra a "subversão comunista" e etc. Além disso, as técnicas de investigação sujeitas ao código penal foram substituídas pelas câmaras de torturas, o arbítrio, a exceção, e cada Delegacia de Polícia e Quartel da PM foram convertidos em centros de torturas, como nos idos tempos da Guarda Nacional, de Filinto Müller, e dos jagunços e volantes das oligarquias rurais - herança direta dos capitães-do-mato, constituídos em polícia mercenária da opressão colonial devido à recusa dos oficiais do Exército brasileiro em executarem este papel monstruoso. Esta situação se acentuou ainda mais quando as FFAA saíram do papel principal da cena política e passaram à história. Durante a transição política, a passagem das polícias militar, civil e federal ao papel principal na segurança pública encontrou um cenário propício para extravasar toda a prepotência e arrogância cultivada nos anos de submissão e papel secundário às FFAA: mutilação constitucional, terror de Estado e paranóia da sociedade; além da áurea dos Doi-Codi, OBAN, CEMAR, SNI (hoje ABIN), etc, os esquadrões da morte se popularizaram de vez como herdeiros do Doi-Codi.

 

 

Durante a transição política, a lei da inércia explicava porque os militares que ocupavam postos secundários na linha de comando, na Ditadura, extravasavam seus recalques sobre as massas trabalhadoras e os prisioneiros políticos e protagonizavam atos para prolongar a Ditadura a fim de atingir certas posições, como foram os casos da Operação Parassá, da Bomba no Rio Centro, da Bomba na OAB e nas bancas de Jornais etc. O mesmo ocorre com as ações das polícias neste exato momento. Elas, cada vez mais espremidas pela crise econômica e a resistência das massas às arbitrariedades e opressão: nas favelas do Rio, a cada ocupação militar e assassinato de crianças ou jovens se segue uma rebelião com paus e pedras que desce dos morros para o asfalto - numa espécie de Intifada. Também crescem as denúncias sobre a violação dos direitos humanos, e assim por diante, atingindo seus mecanismos de acomodação econômica, extorsão, achaque e etc., impulsionando-as cada vez mais ao movimento reivindicativo. Assim, na luta pelo status quo, por mais de 4 ou 5 vezes, se viu movimentos econômicos das polícias. Quem duvidar, faça uma pesquisa nos jornais e revistas burgueses ou de esquerda desde o Pacote de Abril baixado pelo General Ernesto Geisel até os dias atuais. Neles encontrarão farto material noticioso e analítico e verão que, de setor para setor, os episódios de crise se sucederam projetando lideranças estaduais e nacionais, reacionárias e progressistas. Este foi o caso do General Nilton Cerqueira (RJ), acusado como responsável pelo assassinato do capitão Carlos Lamarca; do Coronel Erasmo Dias (SP), do mafioso Hildebrando Pascoal (RO) e do ex-torturador Curió (AM). Mas também de lideranças progressistas ou liberais como o Cabo Júlio (MG); Paulo Ramos e Hélio Luz (RJ) e tudo indica que atualmente a policial Andrea Santos (Bahia) e o Sargento Souza (Tocantins).

 

 

Contudo, o mais preocupante nesta crise atual é que ela se converteu num instrumento que vai além da reivindicação econômica ou de recordações tenebrosas do terror do estado capitalista. O que ela nos remete é à manobra do governo para avançar no Plano de Segurança Nacional - um plano destrutivo que além de não resolver problema algum de segurança do povo, acaba por gerar ainda mais insegurança, pois está nos enfiando bem no meio de uma guerra como meros coadjuvantes. Além disso, impulsiona a destruição de nossa capacidade defensiva frente à Amazônia e ao Prata, pontos estratégicos para uma ocupação militar na região. A ação é astuciosa porque, a propósito da nova concepção de segurança nacional, reduz as FFAA brasileiras ao papel de polícia, como ocorreu no Panamá a propósito do Canal, passagem estratégica que une o Oceano Atlântico ao Pacífico. Mas, com a redução dos exércitos dos países latino-americanos ao papel de legiões do exército americano, ou simplesmente polícias, não destroem apenas a soberania e autodeterminação dos povos e países, também geram um conflito cada vez maior na segurança pública de cada país. Pois se o exército assume o papel de força policial pública, o que será dos policiais de agora? Claro que alguns vão ser aproveitados nas FFAA, mas à grande maioria, seu destino é a segurança privada, o desemprego ou a segurança das bocas de fumo do narcotráfico. E o que esperar disso? Mais e mais insegurança.

 

 

Portanto, é importante entender a crise das polícias para além dos movimentos econômicos e não se deixar levar pela aventura de que basta ter armas nas mãos para fazer o mundo render-se aos seus pés, porque as coisas não são bem assim. Os bandidos pensam da mesma forma e ninguém em sã consciência está disposto a se render a isso. Os EUA têm a capacidade de destruir o mundo várias vezes, mas as massas lutam contra seu domínio imperialista; a Ex-URSS tinha igual capacidade bélica dos EUA e lá as massas derrubaram o regime que se deformou. Do mesmo modo, as ditaduras militares caíram na América Latina como caem na Ásia capitalista apesar da força das armas. Não adianta a força das armas se as massas estiverem contra elas; cedo ou tarde o regime cai. E no obtuso da situação política do Brasil, o mais grave não é nem a greve das polícias de armas nas mãos, nem a utilização política eleitoral deste movimento, mas o ardil de, diante do desgaste do governo e um possível levante popular, impedir que a parte mais progressista e nacionalista das FFAA possa aderir ao povo e se converter num instrumento de nossa soberania, de fato, apoiando e defendendo um legítimo governo do povo e para o povo: um governo revolucionário, que proclame nossa independência econômica, política e ideológica; que se proclame socialista. Pois se é certo que o Artigo 142 da Constituição deixa implícito que as FFAA são responsáveis pela ordem pública na medida em que defendem as instituições democráticas, não é menos claro que o seu recente papel no passado não lhe confere a legitimidade e credibilidade das massas para isto. É como FHC e Bush, a sustentação de seus governos se apóia na opressão econômica, política e ideológica garantida pelas armas. Retire esta sustentação que o teto desmorona. Mas, com o exército nas ruas a intimidar a tudo e todos, o trauma da ditadura militar retorna, as massas se afastam e somente a reação tem espaço para manobrar. Neste contexto, a sucessão presidencial vai ser uma barbada a la Fujimori.

 

 

O problema básico da Globalização é que ela banaliza tanto as "informações e desinformações", que um mesmo golpe pode ser aplicado várias vezes; quanto mais sem importância melhor... É grave a situação do Brasil. É grave a situação mundial!

 

 

Abaixo o governo das oligarquias!

 

Abaixo o plano de destruição total de nossa soberania!

 

Viva a luta pela refundação em todo o país do PC Marxista-Leninista!

 

 

Rio de Janeiro, 02/08/2001

 

P.I. Bvilla / pelo OC do PCML