“Acredito na nossa potência de mudar a história”

O entrevistado do jornal Inverta é o professor e jurista José Luiz Quadros de Magalhães. Mineiro de Belo Horizonte.

O entrevistado do jornal Inverta é o professor e jurista José Luiz Quadros de Magalhães. Mineiro de Belo Horizonte, Quadros é graduado em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II (1983); Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986, 1991 e 1996, respectivamente). Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do curso de Direito do Instituto Metodista Izabela Hendrix, e professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Santa Úrsula (Rio de Janeiro). Foi presidente nacional (Brasil) da Rede para um Constitucionalismo Democrático Latino-Americano no período de 2016 a 2018 e presidente da Red Internacional para un Constitucionalismo Democrático en Latinoamerica, com sede em Quito, Equador, no período de 2017 a 2019. Foi professor visitante no Mestrado em Filosofia da Universidad Libre de Bogotá (Colômbia); do Doutorado da Faculdade de Direito de la Universidad de Buenos Aires (Argentina); na Facultad de Derecho de la Universidad de la Habana (Cuba) e pesquisador na Universidad Nacional Autónoma de México. Possui diversos livros e artigos científicos e jornalísticos publicados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Internacional, Teoria do Estado e da Constituição, atuando principalmente nos seguintes temas: plurinacionalidade, diversidade, democracia, federalismo, direitos humanos, poder, ideologia e constituição.

INV - Quem é José Luiz Quadros de Magalhães?

JLQ - Sou um pai, amigo, filho, professor, escritor. Sou apaixonado. Acredito na nossa potência de mudar a história e construir uma sociedade ética, com direito, sem patrão, sem egoísmo, sem Estado, uma sociedade horizontal, diversa, livre, solidária, livre do mal: uma sociedade comunista.

INV - Qual a relação que se pode traçar entre as manifestações de 2013, o resultado das eleições de 2014 e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016? E qual o significado para o mundo jurídico?

JLQ - As manifestações de 2013 representam o golpe inicial do processo de guerra híbrida travada pelo grande poder econômico e o governo dos EUA contra nosso país. A guerra híbrida, como nova forma de afastar governantes considerados inimigos dos interesses dos Estados Unidos, consiste em uma guerra travada em diversos espaços: uma guerra ideológica (dentro da cabeça e dos corpos); uma guerra econômica, que visa a desestabilização econômica e social, com o intuito de derrubar governos; uma guerra civil, jogando cidadãos contra cidadãos de um mesmo Estado, dividindo a sociedade pelo ódio ao opositor político. Entre as técnicas utilizadas, o primeiro passo seria a mobilização da sociedade em torno de um desconforto difuso, um mal-estar genérico. Os algoritmos nas redes sociais são capazes de identificar o que pode afetar negativamente cada pessoa, fazendo crescer a insatisfação com a vida. O passo seguinte será movimentar as pessoas insatisfeitas levando-as para as ruas. Importante notar que as manifestações de 2013, inicialmente eram bastante difusas, cada pessoa manifestava uma insatisfação com algo diferente. Lembremos ainda que no início das manifestações o governo Dilma Rousseff tinha quase 70% de aprovação. Ao final das manifestações tinha em torno de 30%. Após a movimentação de parte da sociedade, a grande mídia e as redes sociais unificam a pauta em torno de um inimigo comum inventado, que sempre recai sobre o governo considerado prejudicial aos interesses norte-americanos. Fácil entender isto quando percebemos os passos seguintes. Embora a sociedade brasileira, em parte expressiva, tenha conseguido reverter o quadro e eleger Dilma Rousseff, o segundo mandato foi impossível. O Congresso não permitiu um dia sequer de governo e logo veio o golpe de Estado institucional em formato de “Crime de responsabilidade (Impeachment)”. Uma novidade testada de forma simples no Paraguai do presidente Lugo. O que se segue é a entrega do país, acentuada no governo Bolsonaro. Importante ainda lembrar outro mecanismo da “Guerra Híbrida”: o “Lawfare”, ou seja, o uso das instituições do sistema jurídico (especialmente o Judiciário e o Ministério Público) para perseguir e afastar da vida pública políticos que representem algum problema para os interesses norte-americanos. O significado de tudo isto para o mundo jurídico é o fim do Estado Constitucional de Direito. Vivemos uma guerra entre as instituições e o abandono da Constituição. Caos.

INV - Em sua opinião, entre o impeachment da Dilma e as eleições que levaram Bolsonaro para o Planalto Central, em que errou a esquerda eleitoral? Poderíamos ter alguma chance após o golpe contra a democracia e a nossa Carta Magna de 88?

JLQ - O erro da esquerda tem sido recorrente e irritante. Somos piores inimigos para nós mesmos do que os nossos inimigos. A esquerda errou pela intolerância com a própria esquerda, errou pela arrogância, e continua errando. Errou feio ao acreditar que ainda é possível negociar com o sistema, que é possível reformá-lo. Errou ao acreditar nas instituições do Estado de Direito burguês. Errou ao ser tímida e achar que é possível agradar ao Capital. Errou por falta de ousadia. A Constituição encontra-se suspensa. O Supremo Tribunal Federal não age como uma Corte: não é aceitável que um Juiz diga “a” e outro diga “z”. Poderíamos admitir interpretações divergentes levando-se em consideração a complexidade do caso concreto e a interpretação do texto adequada ao contexto. Um poderia dizer “a” e o outro “b”. Nunca, entretanto, na extensão que o STF faz. A impressão que se tem é que os ministros estão sendo fortemente pressionados para descumprir diariamente a Constituição em determinadas situações com determinadas pessoas.

INV - Com os membros da Lava Jato agindo como se fossem um partido político, em oposição ao PT e toda esquerda no Brasil, como você vê o papel do judiciário na atual conjuntura?

JLQ - Como afirmei anteriormente, o Judiciário, parte dele, integra o golpe de Estado e a destruição do país. A “Lava Jato” é um grave atentado à soberania nacional, e sua ação é também contra a democracia e a Constituição. É um exemplo claro de “Lawfare” como instrumento de guerra híbrida. Inacreditável ver que as instituições encarregadas da proteção da soberania nacional não foram capazes de reagir ou talvez sequer perceber a acelerada destruição do país que se inicia com o golpe e a operação Lava Jato. Até agora, a guerra ideológica está sendo amplamente vencida pelos inimigos do Brasil. Somos um país “invadido” e sem capacidade de reação, até o momento.

INV - Mais do que nunca, as forças políticas que representam a burguesia se veem em maior contradição, isso é percebido claramente entre os representantes do executivo e do legislativo. No atual Congresso, Rodrigo Maia tem se pronunciado em apoio à reforma da previdência, mas abre muitas contradições. Em sua opinião, o que revela os 100 dias de governo Bolsonaro?

JLQ - Os 100 dias do (des)governo Bolsonaro revelam algumas coisas. Em primeiro lugar o despreparo, a ignorância, a incapacidade, e, em boa medida, um grave distúrbio mental de alguns de seus membros, incluindo o presidente. O governo está em disputa por um grupo militar representado por oficiais de alta patente que participaram da missão brasileira no Haiti; por um grupo de neopentecostais radicais e fundamentalistas manipulados por igrejas dos EUA ligadas ao Departamento de Estado daquele país (já conhecida forma de aculturamento como estratégia de destruição da soberania de Estados na América Latina); empresários de vários setores que rapidamente se desiludem com a incompetência do governo; e acredito que um ator oculto, que começa a se preocupar, parte do Exército brasileiro que começa a enxergar a grave destruição do país e de sua soberania por esse governo despreparado e surpreendentemente desequilibrado e incompetente.

INV - O governo Bolsonaro e sua equipe é constituído por farsantes e processados por algum ato ilícito, isso sem falar do ministro do Meio Ambiente que já foi processado por improbidade administrativa. Na sua avaliação, os Princípios da Administração Pública correm o risco de virar carta morta em um governo neoliberal?

JLQ - O governo Bolsonaro, como disse anteriormente, é surpreendentemente incompetente e representa exatamente o contrário das razões pelas quais parte importante do eleitorado brasileiro o escolheu. Não só o Estado, mas todo o setor econômico privado está sofrendo e sofrerá muito gravemente os efeitos negativos deste desvario e incompetência. O ministro da Economia está desatualizado com as teorias que o inspiram. Tudo é uma peça trágica e alucinada representada por péssimos atores. Assustador...

INV - A diplomacia brasileira no governo neoliberal de Bolsonaro tem dado sinais que se alinhará aos EUA, o que isso pode significar, em termos econômicos, políticos e, inclusive, jurídicos para o futuro do Brasil?

JLQ - A diplomacia brasileira, de grande tradição e histórica competência, foi assumida por uma pessoa que demonstra claramente, todo o tempo, o seu despreparo, desconhecimento das relações internacionais, da história e de conceitos políticos mínimos. A política externa brasileira coloca o país e sua economia em grave risco. Nos alinhamos cegamente a um império em crise (os EUA), justamente em um momento de expansão impressionante da China com o impressionante investimento em mais de 70 países na construção de infraestrutura para a nova Rota da Seda que já engloba cerca de 120 países.

INV - A nível internacional, como os homens e mulheres do mundo jurídico têm analisado a ascensão da direita com forte apoio dos militares no Brasil?

JLQ - A situação do Brasil causa espanto e preocupação em todo o mundo. Muitos artigos e livros, escritos por juristas brasileiros e de diversos países do mundo, tem denunciado a farsa da prisão do Presidente Lula, prisão política, decorrente de uma decisão de um juiz que virou ministro do governo que ele ajudou a eleger com sua “sentença”, em processo “kafkiano” surreal, onde não há provas e nem indícios, e impossível ter qualquer convicção. Trata-se do Teatro do absurdo o que vivemos.

INV - O CEPPES e o jornal Inverta há décadas organiza o Seminário Internacional de Lutas Contra o Neoliberalismo. Esse ano, como nos outros anteriores, ocorrerá em setembro. O que você acha dessa iniciativa?

JLQ - A iniciativa do CEPPES e do Jornal Inverta de organizar eventos e permanentes discussões qualificadas sobre e contra o Neoliberalismo é de extrema importância. Precisamos nos preparar e apontar alternativas para a crise final do sistema do mundo moderno, e com este sistema, o que ele veio possibilitar: o capitalismo. Precisamos com urgência pensar um outro mundo. Precisamos com urgência construir a transição para este outro mundo, possível e necessário.

INV - Como você vê a necessidade da criação do Congresso Nacional de Lutas Contra o Neoliberalismo e pelo Socialismo?

JLQ - Como dito anteriormente, é urgente. Precisamos parar de resistir, tentando segurar e salvar algumas permissões de direitos (como os trabalhistas e previdenciários) que o capitalismo ofereceu para a esquerda nos últimos 100 anos, e construir imediatamente um outro mundo.

 

Sidnei Martins/Sucursal Inverta MG