A CRISE ORGÂNICA DO CAPITAL, A INICIATIVA 25X25 E A DETERMINAÇÃO SOCIAL NO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
“...Para ser um médico revolucionário ou ser revolucionário, a primeira coisa que deve-se ter é a revolução. De nada vale o esforço isolado, a ânsia de sacrificar uma vida ao mais nobre de todos os ideais se este esforço é solitário…” - Ernesto Che Guevara
Este ano completa-se o prazo para a mais ousada iniciativa médica a nível mundial para o combate às doenças cárdio e cerebrovasculares, vale a ressalva de que estas doenças são hoje a maior causa de mortalidade no mundo, matando anualmente apenas no Brasil cerca 300 mil pessoas.
A iniciativa 25 x 25, firmada na 65ª Conferência da Organização das Nações Unidas – que aconteceu no ano de 2011 –, onde os 194 países membros assinaram o acordo que visava à construção de medidas a serem adotadas em nível mundial, cujo objetivo era a redução de 25% nas taxas de mortalidade prematura decorrentes de Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNT), principalmente as doenças cárdio e cerebrovasculares, até o ano 2025.
Hoje, no ano do fim do prazo estabelecido para a audaciosa meta, que figura entre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU, encontra-se um cenário caracterizado pelo aumento da mortalidade por DCNT em praticamente todas as regiões do planeta e tal constatação contrasta com a dimensão tanto em renome quanto em recursos das organizações envolvidas na iniciativa; dentre elas, destacam-se World Heart Federation, American Heart Association, American College of Cardiology, European Society of Cardiology e European Heart Network.
Os determinantes estudados e o foco das intervenções da iniciativa atuavam sobre sete fatores de risco: uso de álcool; atividade física insuficiente; fumar; pressão arterial; ingestão de sal; diabetes; e obesidade. A ideia era que atuando na redução destes fatores de risco o efeito seria a redução da mortalidade prematura por DCNT em 25% até o ano de 2025.
Contudo, tais fatores de risco, são relacionados ao estilo de vida de indivíduos, não havendo ações efetivas que concatenam as relações sociais de comunidades, Estados e nações envolvidas com as iniciativas adotadas; sequer foi considerado como fator de risco o status socioeconômico, a pobreza, como um determinante para a alteração dos quadros de mortalidade decorrente das DCNT.
Milhões de dólares foram investidos na iniciativa 25x25, os centros mais prestigiados estiveram presentes na construção da iniciativa e mesmo assim os planos basearam suas ações em teorias de saúde coletiva já ultrapassadas. É evidente o fato de que os planos tinham como base muito mais a teoria da multicausalidade, que entende o processo saúde-doença numa perspectiva baseada na história natural da doença, em que as intervenções visam ad alterações de um suposto percurso predefinido e que em sua essência engloba o modelo biomédico, onde o adoecer é apenas um processo biológico em um organismo que funciona como uma máquina e que, ao adoecer, mostra que está desregulada por um fator específico a ser modificado.
Tal concepção teórica já havia sido superada pela própria OMS desde a primeira metade do século XX. Na iniciativa, que é bilionária, estima-se uma verba de R$ 5.469.713.991 por apenas 7 anos do plano (WHO, 2013). Na audaciosa meta, não havia, sinais das concepções do entendimento amplo do processo de saúde-doença e de sua determinação social, mesmo sendo este o atual paradigma científico para ações de saúde coletiva.
Tais fatos nos levam aos questionamentos: Quais as relações entre essas falhas e as limitações da ciência nos dias de hoje? Qual a relação entre essas falhas e a crise orgânica do capital?
Através da teoria desenvolvida pelo revolucionário e cientista social Aluisio Pampolha Bevilaqua, denominada crise orgânica do capital, podemos entender melhor este processo.
A crise orgânica advém da relação entre o aumento do capital constante (trabalho morto: máquinas) em detrimento do capital variável (trabalho vivo: trabalho humano), elevando assim a composição orgânica.
Levando em conta a tendência histórica do aumento do componente constante na produção em detrimento do capital variável, único componente que produz valor, temos uma tendência decrescente da taxa de produção de valor ou de mais-valor, no caso, de mais-valia.
O capitalismo não produz para suprir nenhuma necessidade humana, ele produz para que o mais valor ou mais valia criado no processo produtivo seja apropriado pelos donos dos meios de produção. Assim sendo, falamos de uma crise que abala o elemento mais fundamental do modo de produção capitalista.
Nos tempos de hoje, em que a parte viva (capital variável) da produção é abismalmente menor do que a parte morta (capital constante), termina-se por erodir o paradigma da própria mensuração do valor: o tempo socialmente necessário. Dessa maneira, ele se reduz tanto que o trabalho humano objetificado nas mercadorias passa a ser difícil de ser mensurado, por tão pequeno e pelo próprio aumento do componente constante. Assim, o valor do produto passa por uma deformação, sendo determinado pelo arbítrio.
A ciência e a educação jogam aí um papel fundamental na produção, cujo conteúdo é formado cada vez mais por capital constante. Para tanto, os capitalistas necessitam de contínuo revolucionamento na técnica, portanto, na ciência e, logo, na educação.
E se a ciência passa a ser uma das principais forças produtivas devido a crise orgânica, como ela não poderia também estar em crise? E como essa crise afeta as ciências médicas?
A produção é nada mais que a forma como os seres humanos transformam a natureza para poder viver e suprir suas necessidades; é a maneira como a sociedade se constrói e se desenvolve para sobreviver por meio dos recursos materiais.
O processo de produção é inerente à humanidade e o fazemos em sociedade. Isso pode ocorrer desde o trabalho associado em um campo numa lavoura, em uma complexa fábrica de computadores, até o conjunto complexo de diversas fábricas trabalhando em escala global de maneira coordenada.
Para tal, os seres humanos utilizam-se de sua capacidade teleológica, aquela que os torna capazes de relacionar acontecimentos com seu efeito final, estabelecendo-os capazes de projetar e construir de ferramentas a planos complexos para chegar a esse efeito. Desde unir madeira, cordas e pedra e transformar isso em uma ferramenta primitiva de trabalho até modernos sistemas de máquinas, do controle de animais para produção, do controle da microbiologia, da química e da física.
Essa capacidade humana não apenas nos permite dominar a natureza como nenhum outro ser vivo no planeta, como também nos permitiu, através da história, um grande acúmulo de conhecimento, passado às novas gerações.
Ao conjunto organizado de conhecimentos relativos a um determinado objeto de estudo, seja para análise, estudo e/ou para sua transformação, damos o nome de ciência. A palavra ciência possui sua origem no termo em latim scientia, que significa conhecimento.
Para Bevilaqua a ciência tem em si um duplo caráter, ela encontra-se subjugada ao capital como um departamento na produção capitalista, e hoje não qualquer departamento mas um dos mais, ou o mais importante deles, e ao mesmo tempo contém nela o caráter humano de uso para sanar as necessidades humanas.
As ciências médicas nos permitiu conhecer o funcionamento de células, moléculas, nos permitiu entender o desenvolvimento embrionário humano, o funcionamento de órgãos, nos permitiu tratar doenças antes intratáveis, transplantar órgãos e fazer corações parados voltarem a bater.
Como nos alerta Bevilaqua é necessário entender que ela não é originalmente pura, mesmo as conquistas mais reconhecidas, nos campos considerados mais insuspeitos e supostamente afastados da vida política, carregam as marcas das crenças de seus produtores e de seus possuidores, além das condições específicas do momento histórico no qual foram criadas.
Assim, ela atende àqueles que se apropriam dela, que escolhem quem se tornará um cientista, quais remédios serão desenvolvidos e quais camadas populacionais serão condenadas a uma morte precoce por falta de ação.
A crise orgânica do capital se reflete na ciência e nas ciências médicas, se reflete nas ciências médicas como um limitador, um impedimento a que se siga dando respostas às necessidades humanas.
E isso explica por que teorias, mesmo ultrapassadas e reiteradamente negadas pela realidade, sejam utilizadas em estratégias globais de políticas públicas para o combate a problemas de saúde tão importantes como as DCNT.
Quando entendemos isso entendemos, por um lado, como a Crise Orgânica, gera uma crise na ciência e, por sua vez, nas ciências médicas, e por outro jogamos luz sobre as falhas de concepção quase inexplicáveis dos objetivos da iniciativa 25x25, que não se podem justificar por dificuldades impostas pela estrutura da matéria no mundo físico. Isso porque, conforme já falamos, figuram como membros da iniciativa os mais prestigiados centros de pesquisas contando com verbas bilionárias.
Poderíamos expandir estes exemplos para as falhas de outras macropolíticas de saúde mundiais como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e a iniciativa –90-90-90, ambas iniciativas desenvolvidas pelos melhores cientistas e com recursos materiais abundantes.
Sob a luz da teoria da Crise Orgânica do Capital fica clara a necessidade de repensar os paradigmas das ciências médicas.
Diante de todo o exposto, os fatos parecem indicar que apenas uma transformação radical dentro da Ciência poderia conduzir a uma transformação radical nos meios materiais que permitem a vida e o desenvolvimento dos seres humanos, permitindo reconduzir a ciência ao seu devido papel de apontar um caminho melhor para toda a humanidade, rompendo, assim, com sua subjugação ao atual modo de produção e dando um grande passo rumo à construção de uma nova forma de produzir e viver no planeta.
Os profissionais de saúde que desejam de fato cumprir com seu juramento de colocar sua vida ao serviço da humanidade, necessitarão fazer este debate, e o caminho que ele nos leva parece indicar que: ou seremos revolucionários ou não seremos nada.
Michel Mendes Damasceno