O Brasil de volta ao centro da geopolítica mundial
A Crise Orgânica do Capital conduzida ao ápice pelas novas tecnologias transfigurou-se de crise de acumulação de riqueza e poder, em crise ambiental e de transição do modo de produção. A ciência aplicada de forma generalizada na tentativa de manter a acumulação, chegando ao domínio da vida global, rompeu os limites físico-temporais necessários à produção da mercadoria, transformando-se de força produtiva protagonista e principal ferramenta de contra-tendência, em força destrutiva, constituindo-se o cenário de crise ambiental que conduz os recursos naturais à condição estratégica do novo desenho geopolítico.
A estrutura geológica e a biodiversidade concentrada nos países do BRICS faz com que a conjuntura caminhe em direção ao bloco uma vez que este possui 46% da população mundial, 30% do território, 42% do petróleo e mais de 50% do número de espécies da biodiversidade entre os 193 países do mundo. Esses fatores se unem, por um lado, ao seu poder militar, em especial, o da Rússia, herdeira do complexo industrial militar da URSS, cuja força que era apenas uma conjectura foi demonstrada através da capacidade de sustentar o esforço de guerra contra o ocidente representado pela OTAN na Ucrânia - e, por outro, ao seu poder econômico, em especial, o da China, que com a iniciativa da cooperação econômica Faixa e Rota da Seda, consolida a transição desta à primeira posição na economia mundial, o que já se efetivou em termos de poder de compra e de investimentos. Além disso, a condição de média composição orgânica da maioria dos seus países permite o desenvolvimento da ciência sobre o paradigma da sustentabilidade, cooperação, governança compartilhada, hegemonia multilateral e mediadora da coexistência pacífica - diferente de sua aplicação máxima nos países altamente industrializados do capitalismo, nos quais a ruptura com os limites físico-temporiais da produção de valor foi elevada ao paroxismo.
O Brasil, apesar da sua ausência no protagonismo dos BRICS durante sete anos de golpe parlamentar contra o governo de Dilma Rousseff – da direita (Michel Temer 2016-2018) e ultra direita (Jair Bolsonaro 2018-2022) –, devido sua relevante participação na formação do Bloco e suas características naturais (estruturas geológicas e a maior reserva de biodiversidade do planeta), tem reais possibilidades de recuperar sua participação singular no protagonismo deste, apoiado em sua liderança e prestígio conquistados no período anterior à sua ausência. A eleição de Luís Inácio Lula da Silva tem recuperado os objetivos programáticos dos investimentos em ciência e tecnologia, seguridade social, sustentabilidade e cooperação multilateral - principalmente centrada no Mercosul e nos BRICS -, e assim, o país volta a ganhar centralidade na geopolítica internacional.
Contudo, para aproveitar o espaço que se abre na conjuntura internacional, o país necessita mais do que a retomada de alguns projetos de governo, mas superar as dificuldades e limitações herdadas de sua formação social como Colônia de Acumulação Primitiva de Capital, caracterizada pelo extrativismo, o trabalho servil e escravocrata que sedimenta o animal spirit das oligarquias e parte da cultura popular, que nos ciclos de crise de acumulação transborda para toda a sociedade. Esse processo requer a execução de um Programa de Emergência que segmente um modelo de desenvolvimento econômico, social soberano e inclusivo para superar o desafio interno de emergência do fascismo e neofascismo, alinhados também aos interesses de manutenção do país e da América Latina como reserva de poder estratégico dos EUA.
A possibilidade de retomada deste protagonismo se liga ao seu forte potencial de desenvolvimento científico técnico, comprovado na produção de alta tecnologia, inclusive, na área de defesa1, suas condições naturais que incluem a maior reserva de biodiversidade do planeta, combinada aos cursos hídricos de seus biomas com índices qualitativos e quantitativos ótimos2; a produção alimentícia que confere ao país condições de garantir a segurança alimentar da sua população e que alimenta ⅕ da população mundial3; a multiplicidade de alternativas de adaptação frente as mudanças climáticas4; sua liderança na quantidade de reservas de diversos minérios e hidrocarbonetos estratégicos (mesmo tendo apenas 10% destas mapeadas) que incluem minerais críticos para a transição energética5, estando entre os dez maiores produtores mundiais para nove dos mesmos6.
A mudança na correlação de forças mundiais neste momento em que a Crise Orgânica do Capital se apresenta como crise ambiental, abre a possibilidade para que o país protagonize a construção de um modelo para a existência dos demais países do mundo em termos econômico, político, social e ecológico. Esse processo pode alavancar a ruptura também do poder político-ideológico dos EUA, constituída a partir do cenário crítico do pós-guerra, justamente com a adaptação do modelo de desenvolvimento do Estado de Bem Estar Social, inspirado na social-democracia - em oposição ao modelo do socialismo que ganhou impulsiono neste período - durante a recuperação da Europa e exportado para os países da periferia, constituindo, ao lado da conformação da OTAN e de seu complexo industrial-militar - desenvolvido durante as Duas Grande Guerras e na Guerra Fria como “Cortina de Ferro de contenção do socialismo” - e do seu grande aparelho de comunicação e propaganda (de Hollywood à ArpaNet).
A particularidade desses aspectos que consolidaram a influência dos EUA sobre os demais países explica o fato de no período histórico atual – apesar da catástrofe das crises econômico-financeiras na Ásia, Europa, América Latina e nos EUA; das guerras e conflitos militares na Europa, no Oriente Médio e África – o BRICS, potencial bloco histórico candidato à hegemonia mundial, mesmo com seu domínio militar, e principalmente, econômico, continuar mantendo o reconhecimento formal aos fóruns e organismos orientados pela hegemonia estadunidense. São exemplos o conspícuo Conselho de Segurança da ONU, UNESCO, UNICEF, OMS – e demais instituições internacionais (OIT, OMC, FMI, BIS, BIRD), além das convenções e tratados que regem os Tribunais Internacionais, sem que tenham se desenvolvido instituições suficientemente fortes para a refundação consensual dos princípios regulatórios.
A complexidade da análise do porque não se operou a ruptura do poder político da hegemonia dos EUA requer a retomada histórica de que o capitalismo monopolista após a segunda-guerra conduziu ao surgimento de blocos regionais e globais na sustentação da hegemonia (atualmente dividida entre o G7 e os BRICS). Nestas circunstâncias, as determinações entre poder econômico, poder militar e poder político e, quiçá, poder ideológico, são mediadas pelas interações entre as formações sociais integrantes destes blocos. O G7, por exemplo, apresenta contraditória situação da potência hegemônica (EUA) dominar outras potências, o que lhe permite multiplicar seu domínio e direção em termos regionais ou globais. É ainda importante reconhecer a autonomia epistemológica da política analisada pelo materialismo dialético, mesmo que afirmando a determinação, em última instância, do econômico sobre as diferentes esferas de poder, como se pode comprovar em Marx, Engels, Lenin, Gramsci, Arrighi,entre outros. Desta forma, a transição política precisa condensar um projeto político internacional capaz de unificar um bloco histórico que quebre a resistência dos antigos dirigentes.
É nestes termos que uma ruptura política que acompanhe a ruptura militar e econômica da hegemonia dos EUA encabeçadas por Rússia e China, ambas herdeiras do legado da URSS, pede do Brasil, Índia e África-do-Sul uma intermediação no plano internacional que consista em uma interface entre os países do capitalismo desenvolvido, os países socialistas, as economias emergentes e os não alinhados ao imperialismo. A liderança do Brasil nesta tríade vem sendo evidenciada pelo papel ocupado pelo país na geopolítica internacional, a exemplo da presidência assumida no G20 e seu destaque no G77+, que resultaram em sua escolha para sediar a COP30 na Amazônia Brasileira em 2025, apoiada em fatores ambientais chave, como sua área não antropizada reconhecida em todo o mundo, cinco vezes maior que a do parceiro asiático e quase dez vezes maior que a do africano7.
Para que se realize as potencialidades do país é necessária uma governança que inclua, no plano internacional, reafirmar sua importância regional na América Latina, cujo fundamento seja a biodiversidade, a colaboração científico-técnica necessária a gestão soberana dos recursos e a defesa da integridade territorial, na direção da integração continental, em especial, dos países da Bacia Amazônica. A atual conjuntura se mostra singular quanto a possibilidade do país e toda a América Latina inverterem seu papel histórico na geopolítica mundial, transformando dialeticamente seu status, de reserva estratégica do poder global dos EUA ao de sujeito na transição da Ordem e da Hegemonia Mundial, que se configura como Ordem Multipolar e Multilateral de Hegemonia Compartilhada. No plano global, conduzir um processo de articulação entre os países mais ampla que a do BRICS+, perpassando o G20 e até mesmo o G77, abarcando os países que ainda não tomaram uma posição diante da nova polarização mundial. Portanto, trata-se de uma conjuntura nas relações internacionais que tende à retomada do histórico Movimento de Países Não-Alinhados, constituindo as bases para um novo bloco de diálogo, cooperação e desenvolvimento em defesa da paz e do progresso dos povos.
Para que o povo deste país de proporções continentais conduza esse processo de importância decisiva para toda a Nossa América e o mundo, é necessário que reconheça que têm ocupado há séculos um papel de centralidade no jogo de forças da economia mundial, mas que a visão invertida que faz de si, resultado da carga histórica de sua exploração, turva a percepção das potencialidades que se apresentam no atual cenário. A contribuição teórica da ciência comprometida que exponha a essência dos fenômenos em curso e a articulação das lutas que conscientemente combatam o neoliberalismo como contra-ofensiva do imperialismo a este soerguimento na geopolítica internacional, talvez nunca tenham tido um papel tão decisivo.
Todos e todas ao XVIII Seminário de Lutas contra o Neoliberalismo - A Crise Orgânica do Capital, a Geopolítica de Ruptura da Ordem Unipolar, e a Relevância Estratégica da América Latina e do Brasil!
A presente matéria é uma síntese do artigo “A Crise Orgânica do Capital e o Retorno do Brasil ao Centro da Geopolítica Mundial” de Aluisio Bevilaqua em co-autoria com Júlia Bevilaqua e a autora.
Camila Queiroz Milani
2 https://seea.un.org/content/ecosystem-accounts-brazil-report-ncaves-project
4 https://www.agroicone.com.br/$res/arquivos/pdf/160727143013_BRASIL-2040-Resumo-Executivo.pdf
7 https://seea.un.org/content/ecosystem-accounts-brazil-report-ncaves-project