A Crise Orgânica do Capital e a relevância estratégica da América Latina
A atual conjuntura de Crise Orgânica do Capital e de ruptura da ordem unipolar hegemonizada pelos Estados Unidos conduz a América Latina a uma posição estratégica na geopolítica mundial, reunindo condições historicamente únicas que nos permitem reviver os sonhos de Martí, Bolívar e Artigas; e (por que não?) de Fidel, Chávez e Prestes. A incapacidade da OTAN se sobrepor à Rússia na Guerra da Ucrânia – mesmo com os rios de investimento dos países do Atlântico norte para armamento bélico, inteligência e campanhas midiáticas – significa uma ruptura do poderio militar da OTAN protagonizada pela Rússia, herdeira direta dos avanços científico-técnicos e militares da ex-URSS. A China converteu-se este ano na primeira economia mundial em termos absolutos, e continua sendo um dos países que mais cresce economicamente, anunciando a ruptura econômica da hegemonia estadunidense. As duas potências trazem para o teatro mundial uma proposta de hegemonia compartilhada, sob uma nova ordem multipolar e multilateral, que tem nos BRICS seu protagonista. Neste processo de transição na hegemonia mundial, abre-se à América Latina a possibilidade de forjar sua unidade na diversidade (e na adversidade) para poder finalmente contribuir com o desenvolvimento de toda a humanidade, garantindo nossa sobrevivência perante a Crise Ambiental que ameaça a espécie humana, e a transição para um futuro melhor.
A América Latina é resultado de longo processo histórico que se origina com a expansão do imperialismo europeu, impulsionado pela luta entre o feudalismo decadente e o capitalismo em ascensão na Europa. Os cavaleiros de veste reluzente que aqui chegaram com a espada e a cruz buscavam salvar a alma de um pobre moribundo: o modo de produção feudal. No entanto, em sua espetacular devoção ao ouro e à prata, terminaram por nutrir com todo vigor aquele que enterraria de vez a coroa a que serviam: o sistema bancário da burguesia inglesa, personificação mais contundente do capital na época. Por mais diverso que fossem os povos e culturas que aqui se reuniram no sacrifício aos velhos e novos deuses europeus, foram amalgamadas em um único povo através do genocídio e da miscigenação. Os descendentes daqueles povos, que hoje habitam a contínua extensão territorial do Rio Grande à Antártica e diversas ilhas no Caribe, se comunicam com apenas dois idiomas e podemos insinuar certa unidade linguística em torno do portunhol; além disso, se distinguem como latino-americanos onde quer que vão, com traços mais acentuados de um ou outro ancestral e, tendo sido nutridos por todas matrizes étnicas da humanidade, constituem culturalmente “um dos ramos mais floridos do gênero humano”, segundo o professor Darcy Ribeiro.
O fantasma capitalista que assombrava a Europa feudal encarnou em Napoleão e seu cavalo branco, empurrando a coroa portuguesa para o Brasil e deixando a monarquia espanhola sem cabeça. Este foi o impulso inicial ao processo de independência que resultou, na América Espanhola, na divisão em dezenas de países controlados por caudilhos crioulos locais, conspiradores, inimigos entre si, cujo poder econômico era relativamente frágil e se assentava em uma economia ligada umbilicalmente ao exterior. O retorno da família real portuguesa ao Velho Continente converteu sua colônia em Brasil “independente”, cujo território íntegro permanece quase intacto até hoje, e cujo nobre imperador Pedro I – este sim, literalmente com uma conexão umbilical à Metrópole – honrou todos os laços comerciais com o antigo centro imperial português, e todas as dívidas com os bancos ingleses.
As lutas pela independência revigoraram no imaginário dos povos o sonho de liberdade, anunciando o possível salto de qualidade que permitiria participar na geopolítica mundial como atores soberanos. Porém, sob o controle comercial das metrópoles; o desenvolvimento industrial e econômico truncado; e a situação miserável de vida e trabalho dos povos, cuja escravidão e servidão haviam sido recentemente abolidas (muitas vezes apenas formalmente), não estavam postas as condições para afirmar plenamente o capitalismo. Não obstante, a América Latina manteve seu duplo status, servindo como base de sustentação para a manutenção do imperialismo, ao mesmo tempo que nutre incessantemente o novo que luta para nascer. Os levantamentos, rebeliões, guerras e mais variados episódios de luta dos trabalhadores latino-americanos neste processo de transição demonstram o desejo profundo e latente de liberdade que, ainda no século XIX, começava a nutrir-se também das novas ideias trazidas por operários nas diversas ondas migratórias que chegavam aos portos. Menos de um século depois, o fantasma do comunismo assombrava também a burguesia local, como o demonstram episódios como a Revolução Mexicana em 1910 ou, de maneira patente, a primeira Greve Geral brasileira em 1917.
No século XX, já o capitalismo em sua fase imperialista, este duplo status se torna evidente tanto no período entre as duas Grandes Guerras Mundiais (1914-1945), em que o centro do imperialismo capitalista é passado da Europa para os EUA e é reconfigurado o mapa geopolítico mundial; como durante a Guerra Fria (1947-1991), em que se dá a luta pela hegemonia mundial entre os EUA e a ex-URSS, ou mais precisamente, entre capitalismo e socialismo. Atesta isso a sucessão de governos progressistas, rebeliões populares, levantamentos militares e de civis armados, de caráter nacionalista no primeiro período (1914-45) e de caráter socialista no segundo (1947-91); seguidos da reação violenta de golpes militares, ditaduras, tortura, assassinatos e perseguições perpetradas com o apoio financeiro, material e intelectual dos EUA, em ambos períodos, em todo o continente. A contraditória exceção a esta subordinação forçada, que enfurece a burguesia mundial até hoje, é a República de Cuba, primeira Revolução Socialista na América Latina.
Na atual conjuntura de Crise Orgânica do Capital, o paradigma de valor sobre o qual se erigiu o império norte-americano está em crise, levando a ruínas o gigantesco edifício imperial por ele sustentado. Todos os esforços na segunda metade do século XX (keynesianismo, guerras, toyotismo, robótica, etc), inclusive a dissolução da ex-URSS, não foram suficiente para que os EUA superasse esta nova crise na produção de valor, ostentando taxas de lucro mínimas desde a entrada no século XXI. O neoliberalismo, última investida dos monopólios para superar a Crise Orgânica, ao tempo que elevou a composição orgânica do capital mundial, buscou flexibilizar toda regulamentação do trabalho e do comércio internacional que, assim como os estados nacionais, tornou-se estreita demais para a velocidade ótica e a dimensão global dos monopólios. Foi, naturalmente, rechaçado contundentemente pelos povos latino-americanos.
A Anarquia dos Monopólios exigiu, por sua vez, que a burguesia resgatasse os métodos característicos do período de subsunção formal do trabalho, pois apenas a superexploração do capitalismo sem lei pode garantir as taxas de lucro de outrora. A acumulação capitalista passa a depender cada vez mais destes valores criados fora do mercado formal, 24 horas por dia sete dias da semana, que a ávida burguesia financeira incentiva abertamente como empreendedorismo, e ocultamente no submundo do capital, em especial no reino do tráfico de drogas, armas, órgãos, pessoas e influências. O aumento extensivo da exploração do trabalho encontra também seus limites no espaço geográfico, levando os monopólios a escavar com seus tentáculos as profundezas da terra – principalmente nos vastos continentes submarinos praticamente inexplorados – e lançá-los ao espaço sideral – antes reservado aos monopólios militares, hoje em disputa por setores do turismo suntuoso. Porém, o nível de capital fixo para tais empreitadas as restringe a um seleto grupo de monopólios, voltando as atenções a uma joia quase intacta cuja exploração exige menos investimento: a biotecnologia.
Assim como o El Dorado na utopia feudal, as verdejantes florestas que até hoje se preservam nas antigas colônias atiçam a cobiça do explorador capitalista. E quem preserva o mapa deste tesouro hoje são os descendentes daqueles mesmos povos originários, o repositório de saberes acumulados durante milênios em sua relação não antagônica com a natureza, passados quase clandestinamente por gerações, tendo sido marginalizados pela ciência e a educação burguesas. O fervor filantrópico ao estilo jesuíta é hoje despertado nos milhares de missionários na Amazônia, enquanto a academia promove estudos “científicos” que visam resgatar os saberes tradicionais de diversas antigas etnias, bem como vasculhar suas reminiscências arqueológicas para convertê-las em alternativas sustentáveis – no sentido ecológico e, principalmente, no sentido financeiro, para sustentação do capitalismo. A relevância do continente – onde estão cinco dos 10 países mais biodiversos do mundo – torna-se ainda mais interessante por ser um território livre da ameaça nuclear. A burguesia enxerga claramente este potencial; porém, a Crise Ambiental anuncia que tampouco esta solução será definitiva, pois o modo de produção atual já avançou rumo ao esgotamento dos recursos naturais do planeta, tornando-se concretamente uma ameaça à espécie humana.
Neste sentido, a biotecnologia poderia converter-se para a América Latina em uma arma geopolítica, permitindo pensar a organização de países detentores deste poderoso recurso com o objetivo de situá-los no plano internacional como nações soberanas que a utilizam como motor de seu desenvolvimento. Assim como fez a Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) na década de 1970, esta organização permitiria a seus membros passarem de objeto a sujeito na geopolítica internacional, permitindo que participem em situação de vantagem, visto que a Crise Ambiental situa a biodiversidade no centro do debate sobre a preservação da própria vida. Porém, diferente da OPEP, esta nova proposta pode representar um modelo de desenvolvimento econômico, social e político compartilhado para toda a região, impulsionando de forma sustentável o desenvolvimento do uso humano da biodiversidade mediante a colaboração científico-técnica e a defesa de sua integridade territorial, em especial, a Amazônia.
Claro está que não estão dadas as condições no nosso continente para um salto de qualidade rumo a um modo de produção superior, e o Brasil é um bom exemplo disso; porém, a situação histórica se apresenta como uma encruzilhada: seguir sustentando o Destino Manifesto do imperialismo estadunidense, e testemunhar a intensificação da superexploração violenta de todos os povos sob sua hegemonia; ou contribuir com a construção de uma alternativa, um caminho que leva a uma nova ordem multipolar e multilateral, de hegemonia compartilhada, que respeite o desenvolvimento dos povos, a igualdade e soberania de todas as nações, e a preservação dos recursos naturais essenciais para a manutenção da vida, em especial da espécie humana. Os BRICS já lançaram para o mundo uma proposta neste sentido, e o Brasil – como membro fundador, país mais biodiverso do mundo e principal economia da região – pode ser o interlocutor que conduz os interesses latino-americanos ao centro da nova geopolítica mundial. Devemos sistematizar nossos saberes ancestrais, desenterrar os meios de produção de nossos antepassados, honrar todas matrizes étnicas que compõem nossa cultura, e submergirmos em nossas florestas para redescobrir a América Latina; não no intuito de resgatar o passado, mas para resgatar o futuro.
Nossa compreensão da atual conjuntura de Crise Orgânica do Capital e a relevância estratégica da América Latina é parte de um trabalho de pesquisa liderado pelo professor Dr Aluisio Bevilaqua, que elaborou a tese da Crise Orgânica e desenvolveu, com base no marxismo, concepções científicas originais sobre diversos objetos de pesquisa das ciências sociais e políticas. O resultado mais recente deste trabalho é uma nova tese em fase de conclusão, e algumas de suas principais contribuições serão apresentadas de forma coletiva no XVIII Seminário Internacional de Lutas Contra o Neoliberalismo.
Ms Júlia P Bevilaqua pesquisadora do ETEGS