Engels fala sobre a Comuna de Paris
Artigo de F. Engels sobre a Comuna de Paris
Escrito para a edição em separado de A Guerra Civil na França, de K.
Marx, publicada em Berlim em 1891. Publica-se segundo a edição
soviética de 1951, de acordo com o texto do livro. Traduzido do
espanhol, em confronto com a tradução francesa (Éditions Sociales) de
1946.
Hoje, ao cabo de vinte anos,
voltando os olhos para as atividades e a significação
histórica da Comuna de Paris de 1871, sentimos a necessidade
de introduzir alguns acréscimos na exposição
feita em “A Guerra Civil na França”.
Os membros da
Comuna dividiam-se em uma maioria de blanquistas, que haviam
predominado também no Comitê Central da Guarda Nacional,
e uma minoria composta por membros da Associação
Internacional dos Trabalhadores, entre os quais prevaleciam os
adeptos da escola socialista de Proudhon. Naquela época, os
blanquistas, em seu conjunto, eram socialistas só por instinto
revolucionário e proletário; somente um reduzido número
dentre eles alcançará uma maior clareza de princípios,
graças a Vaillant, que conhecia o socialismo científico
alemão. Eis porque a Comuna deixou de realizar, no terreno
econômico, coisas que, do nosso ponto de vista atual, devia ter
feito. O mais difícil de compreender é, sem dúvida,
o sagrado temor com que aqueles homens se detiveram respeitosamente
nos portões do Banco da França. Foi esse, além
do mais, um grave erro político. Nas mãos da Comuna, o
Banco da França teria valido mais do que dez mil reféns.
Teria significado a pressão de toda a burguesia francesa sobre
o governo de Versalhes para que negociasse a paz com a Comuna. Mas o
mais maravilhoso ainda é a quantidade de coisas justas feitas
pela Comuna, apesar de composta por proudhonianos e blanquistas. Sem
dúvida, cabe aos proudhonianos a principal responsabilidade
pelos decretos econômicos da Comuna, tanto no que tinham de
positivo como de negativo; aos blanquistas, cabe a principal
responsabilidade pelos atos e as omissões no terreno político.
E em ambos os casos quis a ironia da história - como
geralmente acontece, quando o poder passa para as mãos dos
doutrinários - que tanto uns como outros fizessem o contrário
daquilo que prescrevia a doutrina de sua escola respectiva.
Proudhon,
o socialista dos pequenos camponeses e do artesanato, odiava
positivamente a associação. Dizia que ela possuía
mais de mau do que de bom; que era estéril por natureza,
embora nociva, como um entrave à liberdade do trabalhador: que
era um puro dogma, improdutivo e oneroso, contrário tanto à
liberdade do operário como à economia de trabalho; que
os seus inconvenientes desenvolviam-se com mais rapidez do que as
suas vantagens; que, em face dela, a livre concorrência, a
divisão do trabalho e a propriedade privada mantinham-se como
forças econômicas. Só em casos excepcionais -
assim chamava Proudhon a grande indústria e as grandes
empresas como, por exemplo, as estradas de ferro - havia lugar para a
associação dos operários (ver Idéia Geral
da Revolução, 3ª edição).
Em
1871, e em Paris mesmo, dentro do artesanato artístico, a
grande indústria deixara já a tal ponto de ser um caso
excepcional que o mais importante de todos os decretos da Comuna
determinava uma organização para a grande indústria,
inclusive para a manufatura, que não se baseava só na
associação de operários dentro de cada fábrica,
mas devia também unificar todas essas associações
numa grande federação; em suma, numa organização
que, como diz muito bem Marx em “A Guerra Civil”, teria afinal
conduzido forçosamente ao comunismo, isto é, ao
antípoda direto da doutrina proudhoniana. Por isso a Comuna
foi a sepultura da escola proudhoniana do socialismo. Essa escola
desapareceu hoje dos meios operários franceses; neles
atualmente, a doutrina de Marx predomina sem discussão, entre
os possibilistas, não menos que entre os “marxistas”. Só
entre a burguesia “radical” existem ainda proudhonianos.
Não
foi melhor a sorte que tiveram os blanquistas. Educados na escola da
conspiração e mantidos coesos pela rígida
disciplina que corresponde a essa escola, os blanquistas partiam da
idéia de que um grupo relativamente reduzido de homens
decididos e bem organizados estaria em condições não
só de apoderar-se na direção do Estado num
momento propício, mas também, desenvolvendo uma ação
enérgica e incansável, seria capaz de manter-se até
conseguir arrastar à revolução as massas do povo
e congregá-las em torno de um pequeno grupo dirigente. Isso
conduzia, sobretudo, à mais rígida e ditatorial
centralização de todos os poderes nas mãos do
novo governo revolucionário. Mas, o que fez a Comuna, composta
em sua maioria precisamente de blanquistas? Em todas as proclamações
dirigidas aos franceses das províncias, a Comuna exortava à
criação de uma federação livre de todas
as comunas da França com Paris, uma organização
nacional que, pela primeira vez, devia ser criada pela própria
nação.
Exatamente o poder opressor do antigo governo
centralizado - o exército, a polícia política e
a burocracia - instituído por Napoleão em 1798 e que,
desde então, cada novo governo havia herdado como um
instrumento eficaz, empregando-o contra os seus inimigos - exatamente
essa força é que devia ser derrubada em toda a França,
como o fora em Paris.
A Comuna teve de reconhecer, desde o
primeiro momento, que a classe operária ao chegar ao poder não
pode continuar governando com a velha máquina do Estado; que
para não perder de novo a sua dominação
recém-conquistada, a classe operária deve, de um lado,
abandonar toda a velha máquina repressiva até então
utilizada contra ela e, de outro, prevenir-se contra os seus próprios
mandatários e funcionários, declarando-os demissíveis,
a qualquer tempo e sem exceção. Em que consistia a
particularidade característica do Estado até então?
Originariamente, por meio da simples divisão do trabalho, a
sociedade criou os órgãos especiais destinados a
defender os seus interesses comuns. Mas, com o tempo, esses órgãos,
a cuja frente figurava o poder estatal, converteram-se, à
medida que defendiam os seus próprios interesses específicos,
de servidores da sociedade em seus senhores. Isso pode ser visto, por
exemplo, não só nas monarquias hereditárias, mas
também nas repúblicas democráticas. Não
há nenhum país em que os “políticos” formem
um setor mais poderoso e mais desligado da nação do que
a América do Norte. Aí, cada um dos dois grandes
partidos que se alternam no governo é, por sua vez, governado
por pessoas que fazem da política um negócio, que
especulam com as cadeiras de deputados nas assembléias
legislativas da União e dos diferentes Estados federados, ou
que vivem da agitação em favor de seu partido e são
retribuídos com cargos quando eles triunfam. É sabido
que os norte-americanos se esforçam, há trinta anos,
para libertar-se desse jugo, que chegou a ser insuportável, e
que, apesar de tudo, se afundam cada vez mais nesse pântano de
corrupção. E é precisamente na América do
Norte onde melhor podemos ver como avança essa independização
do Estado em face da sociedade, da qual originariamente devia ser um
simples instrumento. Não existe aqui dinastia, nem nobreza,
sem exército permanente - com exceção de alguns
soldados que montam guarda contra os índios -, nem burocracia
com cargos permanentes ou direitos de aposentadoria. E, entretanto,
encontramo-nos na América do Norte com duas grandes quadrilhas
de especuladores políticos que alternadamente se apossam do
poder estatal e o exploram pelos meios e para os fins mais corruptos;
e a nação é impotente diante desses dois grandes
consórcios de políticos, seus pretensos servidores mas
que, em realidade, a dominam e a saqueiam.
Contra essa
transformação do Estado e dos órgãos
estatais de servidores da sociedade em seus senhores, inevitável
em todos os Estados anteriores, empregou a Comuna dois remédios
infalíveis. Em primeiro lugar, preencheu todos os cargos
administrativos, judiciais e do magistério através de
eleições, mediante o sufrágio universal,
concedendo aos eleitores o direito de revogar a qualquer momento o
mandato concedido. Em segundo lugar, todos os funcionários,
graduados ou modestos, eram retribuídos como os demais
trabalhadores. O salário mais alto pago pela Comuna era de 6
mil francos. Punha-se desse modo uma barreira eficaz ao arrivismo e à
caça aos altos empregos, e isso sem falar nos mandatos
imperativos dos delegados aos corpos representativos, que a Comuna
igualmente introduziu.
No capítulo terceiro de "A
Guerra Civil" descreve-se detalhadamente esse trabalho orientado
no sentido de abolir violentamente o velho poder estatal e
substituí-lo por outro, novo e verdadeiramente democrático.
Contudo, é indispensável examinar aqui brevemente
alguns dos aspectos dessa substituição por ser
precisamente a Alemanha um país em que a fé
supersticiosa no Estado se transplantou do campo filosófico
para a consciência comum da burguesia e mesmo de numerosos
operários. Segundo a concepção filosófica,
o Estado é a “realização da Idéia”,
ou seja, traduzindo em linguagem filosófica, o reino de Deus
sobre a terra, o terreno em que se tornam ou devem tornar-se
realidade a eterna verdade e a eterna justiça. Surge daí
uma veneração supersticiosa do Estado e de tudo o que
com ele se relaciona, veneração supersticiosa que se
vai implantando na consciência com tanto maior facilidade
quando as pessoas se habituam, desde a infância, a pensar que
os assuntos e interesses comuns a toda a sociedade não podem
ser regulados nem defendidos senão como tem sido feito até
então, isto é, por meio do Estado e de seus bem pagos
funcionários. E já se crê ter sido dado um passo
enormemente audaz ao libertar-se da fé na monarquia
hereditária e manifestar entusiasmo pela República
democrática. Em realidade, o Estado não é mais
do que uma máquina para a opressão de uma classe por
outra, tanto na República democrática como sob a
monarquia; e, no melhor dos casos, um mal que se transmite
hereditariamente ao proletariado triunfante em sua luta pela
dominação de classe. Como fez a Comuna, o proletariado
vitorioso não pode deixar de amputar imediatamente, na medida
do possível, os aspectos mais nocivos desse mal, até
que uma futura geração, formada em circunstâncias
sociais novas e livres, possa desfazer-se de todo desse velho traste
do Estado.
Ultimamente, as palavras “ditadura do proletariado”
voltaram a despertar sagrado terror ao filisteu social-democrata.
Pois bem, senhores, quereis saber que face tem essa ditadura? Olhai
para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do
proletariado!