Carlos Dafé - Lenda viva do soul samba carioca
Carlos Dafé - Lenda viva do soul samba carioca
O Inverta entrevista Carlos Dafé vem de uma família de músicos, pai multi-instrumentista e mãe poetisa; nasceu em Vila Isabel lá pelos idos de 1947,foi batizado na igreja de Cosme e Damião, batismo da morte como diz Dafé, a história era a seguinte: “batiza ele logo porque ele já está para morrer”.
I - Como foi sua infância e como a música tornou-se um referencial que te acompanhou por toda a vida?
CD - Aos 12 anos já estudava na academia de música. No primeiro ano tive o meu primeiro concerto e já tocava em conjunto, tendo estudado com a professora Madalena da Silva Prata. Vindo da Época do Rádio, que era a referência, a televisão vem somente depois, e, quem tinha um gramofone era luxo. Meus instrumentos, ou melhor, meus brinquedos, sempre foram instrumentos como gaita, violão, cavaquinho e por aí. Adolescente tive a influência cubana, com a febre da música cubana que nos pegou e nós tínhamos muita influência pela história do país e sua arte. Tivemos vários conjuntos na Penha, no subúrbio, na era dos "Românticos de Cuba"; tudo influenciado pelo instrumental da música cubana, mas também sempre ouvindo e freqüentando muitas rodas de choro; até porque meu pai era um chorão: tocava bandolim, cavaquinho, acordeon. Quem me passou muita coisa foi ele. Com 10 anos já tocava em regionais de choro, tocando escondido do Juizado de Menores por não ter autorização.
I - Dafé vai crescendo, desenvolvendo, chegando à fase do Caribe que passa a conhecer ao servir na Marinha como músico.
CD - É, conheci o Caribe, Martinica, Porto Rico, Miami, trazendo muito material para ouvir; muito jazz, música caribenha. E é o que na verdade me ajuda muito nas minhas pesquisas musicais. Na Marinha fui considerado um inovador musical até porque a música era muito quadrada. Tentei influenciar na mudanças e até nas pesquisas de alguns acordes e em algumas atitudes como a forma de tratar um ao outro, de igual pra igual. Mas aí não deu porque minha maneira de pensar era totalmente diferente da maneira deles pensarem e isso começou a incomodar.
I - Você chegou a ser preso por “incomodar”?
CD - Fiquei preso nos árduos períodos da ditadura militar. Na prisão, para não ver o tempo passar, escrevia e compunha, criava muita coisa, tendo contato com muitos presos políticos entre eles Rafael de Almeida. Nós não tínhamos muito contato, era por código e por música.
I - Como foi para você o final dos anos 60 e o início dos anos 70?
CD - No início dos anos 70 é quando vou definitivamente para a carreira solo, já tinha contato com Oberdan Magalhães (Banda Black Rio), Paulo Moura, Don Salvador e o Grupo Abolição. Meu primeiro disco foi pela antiga Phono-gram, hoje Polygram, em 72. O Ivan Lins me deu muita força, assim como o Roberto Menescal, o Edson Barcelos, um grande amigo lá de Bangu. Esse trabalho chegou nas mãos de Tim Maia, que ficou sabendo que tinha um cara que tocava piano, instrumentos de cordas e que fazia arranjos. Ele pediu para o Carlos Garcia entrar em contato comigo, em Vigário Geral; quando vi estava no hotel onde morava o Tim. E dali foi formada uma amizade muito boa. Logo em seguida, o Oberdan e Luís Carlos Batera vieram me buscar para tocar com a Tânia Maria, uma superpianista de jazz, hoje uma das maiores do mundo, dando freqüentes concertos nos EUA e Europa e que o Brasil não conhece. E vou tocar com Elsa Soares; de volta ao Rio, trabalho com a Nora Ney e o Jorge Goulart, com direção de Caribe da Rocha, um dos remanescentes do Cassino da Urca, onde conheço Lisa Minelle, Michael Jackson (Jackson Five). Apesar de ser músico da banda do espetáculo pelo meu timbre de voz, fazia backin’vocal, chamava atenção. A Nora e o Jorge Goulart me deram a maior força junto ao João Araújo (pai do Cazuza) para que eu gravasse o segundo compacto pela gravadora Som Livre. Meu nome era Carlos Da Fé, separado, e na nova gravadora, mudei para Carlos Dafé.
I - Cite alguns hits seus e fale sobre o movimento cultural de que você tomou parte a partir de 74.
CD - Do primeiro compacto “Verônica” e “Venha matar Saudade” foram gravadas por vários intérpretes da MPB e internacionalmente também; hoje foi regravada pelo Katinguelê, e vez em quando é cantada pela supervoz do ex-Farofa Carioca, Seu Jorge. Em 1975, já acontecia um outro clima, com muita influência da Soul Music. Formamos o grupo Senzala, que foi a base da histórica Banda Black Rio, tendo à frente o saudoso Oberdan Magalhães e o Barrosinho, no clima do próprio movimento (Black Rio) é que surge também outra histórica banda, o “Som Imaginário” tendo à frente Robertinho Silva, que está na lista dos 5 melhores bateristas do mundo. O grupo Senzala tocava numa boate chamada Black Horse, em Ipanema, e o Dori Caymi e Nana Caymi sempre estavam lá nos vendo tocar. Eles, o Emílio Santiago, a Alcione e a Joana se apresentavam numa outra boate, chamada Preto 22 e nos fez o convite pelos dois irmãos talentosos para que o Senzala acompanhasse essas feras ainda despontando. Nessa altura do campeonato, a Nana grava vários sambas meus, entre eles, o “Passarela”; faço várias apresentações com a Rosinha de Valença, logo em seguida vem “Pra que Recordar o que Chorei”, com mais de trinta regravações no mundo todo, sucesso até hoje. Considerada uma das obras-primas da música “soul” brasileira.
I - Tinha muita essa coisa dos bailes também. Dá para fazer um paralelo com o movimento musical de hoje?
CD - Nos bailes do subúrbio estava acontecendo alguma coisa diferente, o Don Filo, Milton, Big Boy, o Ademir Lemos, já no andar de cima, além da Baixada e Zona Oeste, existia o movimento no Canecão, em Botafogo, e o Don Filo teve a idéia de conversar com André Milani para fazer uma banda brasileira voltada para o movimento black, ou seja, a Banda Black Rio, mas que na verdade o movimento musical já vinha lá atrás com o Don Salvador e o Grupo Abolição, sucesso num dos festivais da canção “Alegria”, cantada por Luís Carlos Batera. Tinha também “Os diagonais”, o “Cassiano”, o Lincon Olivetti, Robson Jorge, Tony Bizarro, sem contar as bandas como a “União Black” do nosso amigo Don Luiz Rasta, Gerson King Kombo, que está fazendo muito sucesso no meio Hip Hop.
Foi uma pena que um movimento tão forte como esse no cenário cultural, não tenha tido uma visão política mais forte, mas que mesmo assim incomodou a máquina do Sistema, que tomou um susto com a gente. Hoje ser negro virou moda, na época nós assustamos. Por outro lado faltou união, o Sistema pegou essas fragilidades. Sobre os hits, acho que ninguém imaginava que seria tão forte; eu tinha uma música na novela “Dona Xepa”, às 18 horas, com a Banda Black Rio, com “Maria Fumaça”, às 19 horas, no Rio. Em São Paulo, o primeiro concerto black que nós fizemos tinha cerca de 20 mil pessoas junto com a Chik Sholl, Zimbabue, agora imagina 20 mil pretos e pobres da periferia? Isso incomodava ao Sistema pela postura assumida pelo povo de periferia - “black power” e pela qualidade excelente não só das músicas, mas dos músicos. Muitos que estão tocando jazz, música instrumental, samba de qualidade saíram daquela época.
I - Como você avalia as novas tendências e os novos rumos?
Cd - O que me alegra é que estou vendo uma rapaziada se movimentando tanto no Rio como em São Paulo. No Rio tem o Seu Jorge, em São Paulo, a Paula Lima, Berimbraun; em Minas, o pessoal do Hip Hop querendo saber informação sobre o movimento, talvez com uma visão política mais apurada, com mais recurso de informação; mesmo com o sistema injetando muita coisa ruim, principalmente para as camadas mais carentes, porque o rico tem Net e Internet.
Quem vai produzir meu CD é o Seu Jorge, se negociar, negociou; se vender, vendeu se não vender fica registrado uma coisa de qualidade. Ele está me dando total liberdade. Estou tirando coisas do baú que estavam guardadas, vamos mesclar o pessoal da antiga com pessoal mais novo. Além do novo trabalho produzido por seu Jorge está saindo fresquinho, uma coletânea produzida pelo Titã Charles Galvan, na verdade Galvan salvou meu trabalho que estava mofando. É uma coletânea muito bonita. Isso é um exemplo do descaso com um trabalho de qualidade, não estou nem falando do meu trabalho, mas de muitos que já foram mofados e a história se perdeu. Mas nem tudo está perdido, apesar de tudo, ainda existem pessoas sérias, que resistem dentro desse sistema corrupto que só tem um jeito: lutar contra ele. Acredito em vocês jovens. É como diz o ditado, uma andorinha só não faz Verão; ou a gente se junta ou vamos morrer do coração.