Quem faz o movimento? - Ruy Mauro Marini
I - Ruy, conte um pouco da história da sua origem: onde você nasceu, um pouco do seu ser social. Como é a vida de Ruy Mauro Marini?
RM - Sou originário de Barbacena, Minas, de uma família de classe média, bastante numerosa; éramos dez filhos, eu sou o sétimo. Terminado o curso colegial, vim para o Rio, em 1950, com 18 anos incompletos. Minha vocação era para a literatura, poesia, filosofia; era disso que eu gostava. Normalmente, a minha saída deveria ter sido a Faculdade de Filosofia, mas o grande centro de ciências sociais da época era a Faculdade de Direito, pertencente à então Universidade do Brasil, para onde acabei me dirigindo. Isto foi muito importante para mim, menos pelo direito, do que pela abertura que dava para as ciências sociais, através de professores como Hermes Lima, Pedro Calmon, entre outros. Mas, apesar de ser interessante, eu queria mais. Isso me levou ao curso superior da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP), da Fundação Getúlio Vargas, com uma bolsa de estudos.
I - O Brasil estava vivendo uma situação complicada...
RM - Sim, com a campanha lacerdista e o suicídio de Getúlio. A reviravolta que isto provocou levou finalmente à presidência de Juscelino, após o contragolpe de 55. A segunda metade dos 50 foi um período de relativa calma, apesar dos alçamentos militares, reminiscências do período anterior. Em 57 e 58, começaram a dar-se algumas manifestações importantes de massas. Como a mobilização estudantil, liderada pela UNE. A isso se seguiu um movimento grevista importante, que envolveu funcionários públicos e operários.
I - E você estava inserido nesse processo.
RM - Exatamente. No final dos anos 50, começaram a aparecer os grandes movimentos de massa, de caráter reivindicativo. Logo, o movimento operário passa a buscar formas de superar as limitações da CLT em relação à ação unitária. Surge, então, o Pacto de Unidade e Ação, o PUA, com greves que movimentavam os setores operários e que contam com o engajamento dos estudantes. Isso deu lugar a um novo movimento de massas em todo país. Porque precisamos não esquecer que o movimento de massas fora desarticulado e cooptado durante a ditadura de Vargas, no seu primeiro período, enquanto o Partido Comunista sofria uma violenta repressão.
I - Nessa época, você já tinha acesso às idéias marxistas?
RM - Originalmente, eu tinha interesses diferentes; meus autores prediletos eram Gide, Proust, Rimbaud, Thomas Mann. Me aproximei do marxismo por distintas vias, em discussões com pessoas da minha própria família, logo, já na faculdade. Na EBAP, esse interesse cresceu. Com efeito, a EBAP tinha recrutado seus professores fora do mandarinato conservador e reacionário, que dominava as universidades de então, baseadas na cátedra vitalícia. Quem exerceu grande influência sobre mim foi Alberto Guerreiro Ramos, brilhante, eclético, mas aberto às idéias do seu tempo, entusiasta da CEPAL e militante da corrente desenvolvimentista e nacionalista, fundador do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Participei desse processo, porque eu era seu assistente.
Em 1958, viajei para Paris, para estudar Ciência Política. Na França, ocorreram duas coisas importantes. Em primeiro lugar, um certo deslumbramento, ao encontrar um ambiente intelectual mais aberto, vibrante, e uma vida política na qual atuava legalmente um Partido Comunista. Com o tempo, fui me desiludindo com a política e com os intelectuais franceses. Em matéria de política, o PCF usava uma retórica revolucionária, mas cuidava de se manter dentro do sistema. Os intelectuais franceses, por seu lado, começaram a parecer-me pessoas cobertas de brilhantes lantejoulas, mas que, por baixo das lantejoulas, vestiam uns poucos farrapos. Seguiam rigorosamente a moda do dia e contribuíam com uma duas ou três idéias, que os tornavam "donos" de algum tema: um era dono do tema partidos políticos, outro dos meios de comunicação, etc. O segundo aspecto ao qual eu me referi foi que descobri realmente o marxismo. Tinha, ali, acesso direto aos materiais de Marx e também Lênin. Foi a esses autores que eu dediquei a maior parte do meu tempo, na França. Quando voltei ao Brasil, eu já me considerava um marxista.
I - Como era o ambiente intelectual na França, naquele momento?
RM - Estavam então em moda as teorias do desenvolvimento, formuladas para canalizar as inquietações que fazia nascer o processo de descolonização. Tinha-se nas Nações Unidas uma série de novos e antigos países ex-colonias qüe, de repente, descobriam que contavam com desigualdade brutais em matéria de desenvolvimento econômico e social, em comparação com EUA, Inglaterra, França, o que gerava descontentamento e reivindicações. A resposta destes últimos foi formular as suas teorias do desenvolvimento, que consideravam que o subdesenvolvimento era uma etapa pela qual tinha que passar todo mundo, todos os povos; progressivamente, chegaria o momento no qual se daria o salto para um desenvolvimento capitalista pleno; entre os principais autores que formularam essa teoria, nos 50, estavam S.H. Frankel, W. W. Rostow e W. Arthur Lewis; eu era aluno de Georges Balandier, que trabalhava muito esse enfoque. Mas o instrumento mais importante para a difusão dessas teorias foi institucional. Criaram-se pela ONU agências por região (América Latina, Ásia e Europa), que se dedicava a estudos sobre a questão e a formular políticas para o desenvolvimento econômico. A nossa foi a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). Quanto mais eu estudava essa corrente de pensamento, mais discutível ela me parecia, sobretudo quando adotava uma orientação antropológica, como com Balandier.
A questão do nacionalismo foi também importante no debate francês, mas desde um ponto de vista crítico e anti-imperialista. Primeiro, pela guerra da Argélia, já que não foram poucos os franceses que tomaram o partido do FLN. Depois, pela revolução cubana, que teve um grande impacto na França, muito mais do que no Brasil. Havia aqui desconfiança, a idéia de que poderia ser apenas mais uma revolução liberal, como tantas. Eu me lembro que, ao revincular-me ao pessoal da UNE e da UMES, passei a escrever em O Metropolitano, que era um jornal da UMES, bastante bom, que se distribuía aos domingos com o Diário de Notícias. Comecei justamente com uma série de reportagens sobre Cuba. Mas a revolução cubana só teve de fato impacto no Brasil depois da invasão da baía dos Porcos, em abril de 61, quando Fidel Castro se declarou marxista-leninista.
I - Por isso você reagiu ao desenvolvimentismo?
RM - A partir da leitura de Marx, principalmente, assim como Lênin, Rosa Luxemburgo, Bukarin (Trotsky, eu quase não li nessa época, li muito depois, devido àquele anti-trotsquismo dos PCs, que afetava a todos os marxistas), adquiri a certeza de que o desenvolvimentismo e o nacionalismo tinham que ser questionados, tinham que ser vistos de uma outra perspectiva: do ponto de vista da exploração. Inserto no contexto colocado pela guerra da Argélia, era interessante como pensar o Brasil, num quadro teórico diferente do praticado pelos intelectuais do ISEB e do PCB.
I - Havia no Brasil um grande movimento sindical, camponês e, também, o ISEB, funcionando a todo vapor. Foi até criado um comando dos trabalhadores intelectuais. Quais as suas relações com esse pessoal: Nelson Werneck Sodré, Oscar Niemeyer, José Alves de Assis?
RM - Quando voltei da França, retomei os contatos normais com o pessoal do ISEB, particularmente Guerreiro Ramos, que era o mais próximo, além de Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier; havia entrado, também, gente mais nova, como Wanderley Guilherme dos Santos. Cheguei a ministrar cursos de verão no ISEB. Mas, na verdade, aqui, o meu processo foi outro. Por um lado, havia já uma vinculação, tomada a partir da França, com o grupo que publicava a revista Movimento Socialista e que, em janeiro de 1961, fundou a Organização Política Operária (POLOP).
I - Esse período da década de 60, quando você retorna ao Brasil, foi um período de grande efervescência. Como você avalia esse período e como você viveu tudo isso?
RM - Na verdade, o Brasil de 1960 ainda era um Brasil que vinha daquela fase nacional desenvolvimentista. Estavam as relações difíceis com o FMI, a polêmica entre estruturalistas e os mo-netaristas, em torno ao desenvolvimento e à inflação. Esse era um pouco o clima, mas se notava já a ascensão do movimento de massas que eu mencionei. Entra, então, o Jânio, que foi um choque assim como Collor no seu primeiro momento, com políticas espetaculares: uma política externa independente, uma política de contenção salarial, a abertura ao capital estrangeiro, enfim, uma série de medidas que, inicialmente, desnortearam o país. Mas o importante do governo do Jânio é que esteve marcado por crises constantes, que culminaram em setembro de 1961 com a renúncia. A partir daí, o movimento popular realmente ganhou uma força enorme, inclusive por causa da resistência à tentativa de golpe, particularmente no Rio Grande do Sul, liderada pelo Brizola, mas com repercussão em todo o país. Houve uma ascensão do movimento de massas sem precedentes na história do Brasil. Quando o Jango assume, forma-se o CGT, Comando Geral dos Trabalhadores, sem existência legal, dada a proibição de centrais existente na CLT. Surge também o movimento dos trabalhadores agrícolas, com grande força, disputado pelas Ligas Camponesas e pelo PCB.
I - Como desfecho dessa situação, com o golpe militar de 64, qual foi a contribuição dada pelo grupo formado em torno da POLOP? Qual foi o seu papel?
RM - O objetivo da POLOP era elaborar um programa socialista para o Brasil e lutar pela sua aplicação no contexto da revolução brasileira. Ela teve bases muito ativas no Rio, São Paulo, Minas, e também na Bahia, Rio Grande do Sul e Brasília. Sua contribuição principal se deu em três planos. No plano teórico, ela procurou pensar o Brasil em termos marxistas e revolucionários, rompendo o monopólio marxista do PCB na esquerda; isso implicava combater a sua tese sobre o caráter da revolução brasileira, que o PCB concebia como uma revolução democrática-burguesa, com objetivos exclusivamente anti-monopólicos, anti-feudais e anti-imperialistas. Para nós, o Brasil não era semifeudal nem semi-colonial o Brasil era um país capitalista subordinado ao imperialismo, e a revolução que devíamos realizar seria simultaneamente socialista e anti-imperialista, sem ter que passar pela etapa democrática-burguesa. Entretanto, devido inclusive à repressão que sofreu depois de 1935, o PC não tinha chegado a desenvolver uma teoria econômica própria, aceitando passivamente as formulações da Terceira Internacional sobre os países atrasados, coloniais e semi-coloniais, que pregavam a união com a burguesia nacional em frentes nacionalistas do tipo Kuomintang. Quando surge a CEPAL, nos anos 50, ela proporciona ao PC uma justificação econômica moderna para suas teses. Isto leva à aliança implícita dos intelectuais do PC com a CEPAL, obrigando-nos a atacar também a teoria cepalina ou desenvolvimentista. Estão aí as raízes da teoria da dependência, que viria a ter muita influência na América Latina e inclusive na esquerda norte-americana, européia e até africana e asiática. Curiosamente, sua influência foi menor no Brasil, provavelmente porque, com a ditadura militar, se estabeleceu um cerco em torno do país, com o objetivo de isolá-lo das idéias que se discutiam no exterior. A versão que se difundiu aqui da dependência é a mais edulcorada, não sendo conhecidos os debates que se travaram entre seus integrantes e tampouco sua versão mais radical, que corresponde à teoria marxista da dependência. No plano da propaganda, a POLOP, depois de pôr fim à revista que lhe dera origem, Movimento Socialista, criou a revista Política Operária, que se converteu mais tarde em jornal mensal e, finalmente quinzenal. Ele nos deu mais capacidade para penetrar em setores de vanguarda do movimento de massas, como alguns sindicatos, a Associação dos Sargentos, a Associação dos Marinheiros, os estudantes. O terceiro plano significativo, enfim, do trabalho da POLOP foi a formação de quadros. A POLOP trabalhou muito esse aspecto da ação política e criou uma fornada de quadros, que se fizeram presentes sobretudo na segunda metade dos 60s.
I - Na prática, isso levou a POLOP a rechaçar a tese da frente ampla contra a ditadura e a propor...?
RM - A luta armada. A ditadura ainda não estava consolidada em 1964, havia amplas reservas de combatentes, mas nossas limitações não permitiam convocá-las. O caminho que víamos então era partir para a organização de um foco guerrilheiro, que funcionasse como foco propagandístico e mobilizador. A POLOP optou por isso, na primeira reunião do seu Comitê Central, logo depois do golpe. Um núcleo de militantes, no Rio, retomou o trabalho entre os militares e, integrado também por dirigentes e membros das associações de marinheiros e sargentos, começou a preparar o foco, chegando a concretizar os estudos que serviriam, mais tarde, para o movimento de Caparaó. Entretanto, a maioria do núcleo caiu a meados de 1964, na primeira grande ação levada a cabo pelo CENIMAR. Embora a queda não afetasse o resto da organização, interrompeu o trabalho de preparação para a guerrilha, interrupção que se prolongou demasiado e acabou criando problemas internos. Estes se agravaram com o desprendimento do PCB de amplos setores da Juventude Comunista, que optaram também pela luta armada e acabaram por constituir o primeiro MR-8. Em consequência, a partir de 1968, teve início uma série de cisões na POLOP, que levaram ao seu desaparecimento e deram origem a novas organizações: a VPR e a VAR-Palmares, partidários da luta armada, e o POC, que adotava uma tática insurrecional.
I - Como você vê o papel de uma publicação como o INVERTA, no processo atual?
RM - Acho que o Jornal cumpre um papel necessário, levantando questões de interesse das grandes massas e, inclusive, formulando uma linha de recuperação de experiências para a formação das novas gerações, que não conhecem ( nada disso, porque foi tudo ocultado e distorcido. Penso que seria bom que o INVERTA contasse com a colaboração de núcleos de trabalhos, que não têm que estar dentro da redação. No trabalho de propaganda, é decisivo atingir os setores formadores de opinião. Lembrem-se que Opinião, por exemplo, e outros jornais alternativos da década de 70 fizeram isto com bons resultados. Foi um momento em que havia nas universidades, nos centros de estudos, nos escritórios, nas fábricas, quadros qualificados, professores, pesquisadores que procuravam pensar a realidade brasileira sob um ponto de vista crítico, como uma das formas de participar na luta contra a ditadura. Esta situação não existe mais ou existe cada vez menos. É impressionante a cooptação da intelectualidade brasileira pelo sistema e sua subordinação às modas importadas. Por isto, acho que a redação vai ter que atrair para ela todo um trabalho que está se fazendo. Se não houver uma, prática teórica revolucionária, capaz de entender realmente o que se está passando no Brasil e no resto do mundo, do ponto de vista da economia, da política, da sociedade, do trabalho etc, não teremos o que propor ou vamos ficar no plano da mera utopia. Creio, portanto, que, além de criar diretamente opinião, o Jornal deve procurar fontes de alimentação e correias de transmissão, que podem ampliar muito a sua eficiência.