Quem faz o movimento? José Nilo Tavares

José Nilo Tavares faleceu em 22 de dezembro de 1997, reproduzimos aqui, entrevista concedida ao Jornal Inverta nº 113

José Nilo Tavares escreve semanalmente uma crônica para o INVERTA desde o seu primeiro número. Foi professor da Universidade Federal de Minas Gerais, da Universidade Federal Fluminense e atualmente encontra-se licenciado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde ingressou em 1966. Doutor em Ciência Política, fez o pós-doutorado em Milão, Itália, com o patrocínio da CAPES. Ministrou cursos ou participou de seminários em várias universidades europeias, norte-americanas ou latino-americanas, e, atualmente, é professor fellow do Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, da Antigua Universidad de Onati, no país vasco, Espanha. Escreveu vários livros sobre História e Ciência Política, editados pela Vozes e Civilização Brasileira, dentre outras, e dezenas de ensaios e artigos para revistas nacionais e internacionais. Foi diretor do Departamento de Sociologia da PUC e do CNPq, em Brasília, logo após a redemocratização, em 1987. Mas o orgulho maior, o título que mais aprecia é o de soldado das causas populares e nacionalistas, de combatente socialista e o seu grande sonho é ver o nosso país e nosso povo, mesmo pobres, elevados à dignidade de Cuba e do povo cubano.

I - Zé Nilo, como foi o seu princípio de vida?

JN - Meus avós, sul mineiros, eram ricos e poderosos fazendeiros e comerciantes, vinculados a tradicionais famílias, como os Rezende e os Xavier, do grande patriota Tiradentes. Meus pais foram atingidos pela crise de 1929, no ramo da plantação de café, tiveram nove filhos e quando reconstruíram a sua vida financeira, participando da organização de um banco de parentes (o BRADESCO), em São Paulo, meu pai morreu, aos 44 anos de idade. Voltamos para Minas, onde num colégio de irmãos maristas, completei o ginásio e científico. Fui morar em Belo Horizonte, determinado a seguir a carreira diplomática, mas acabei embrenhando-me na literatura, no jornalismo e no curso de Sociologia.

I - E a sua iniciação política?

JN - Quando adolescente, por influências familiares, tive um apagado e curto namoro com o integralismo e o udenismo (UDN), mas na Universidade, aos 18 anos, operou-se a transformação. Nasceu uma paixão duradoura, por toda a vida, pelo socialismo e, embora jamais tivesse qua quer tendência homossexual, por três homens: Marx, Engels e Lênin. Ingressei na política estudantil, fui dirigente do Diretório Central dos Estudantes, da União Estadual dos Estudantes e da UNE, na década de 1950. Fiz parte da aliança operária-camponesa-estudantil e participei de todas as campanhas nacionalistas, populares, antirracistas e feministas que então ocorreram. Tenho o orgulho de ter sido o primeiro jornalista mineiro a ir a Cuba e haver escrito, para Binômio, em 1961, uma reportagem imparcial, e portanto elogiosa, sobre o regime fidelista cubano. Orgulho-me, igualmente, de ter conhecido pessoalmente, Che Guevara e Fidel Castro e... me enamorando de uma linda miliciana.

I - O que representou, para você, o golpe militar de 1964?

JN - Muito. Pela participação política anterior e pelo fato de haver escrito uma reportagem sobre os desmandos do general Punaro Bley, comandante de unidade militar em Belo Horizonte, e contrário à posse de Jango, quando Jânio Quadros renunciou, cassaram-me, perseguiram-me, ameaçaram-me de morte. Mas Deus é grande, auxiliou-me e os milicos não conseguiram me prender. Não apenas Deus, mas também por um automóvel “Gordini”, que eu possuía, e que era mais veloz do que os carros da polícia.

I - E foi aí que você veio parar no Rio de Janeiro?

JN - Foi aí. Graças a alguns amigos, e principalmente a Otto Maria Carpeaux, arranjei emprego, como repórter, no Correio da Manhã, na época, o grande centro de resistência contra a ditadura. E depois de alguns meses na clandestinidade, parece que “os homens esqueceram-se de mim. Em duas ou três outras ocasiões, quando eu participava, de várias maneiras, da resistência à ditadura, ameaçaram-me, mas novamente dei sorte.

I - Como foi a resistência, no campo do jornalismo e da intelectualidade?

JN - Muito bonita. O núcleo de articulação era o Partido Comunista, ao qual nunca me filiei, mas de que sempre fui simpatizante e colaborador. Os grandes intelectuais brasileiros, com raríssimas exceções, uniram-se na luta contra o regime militar. As minhas funções ligavam-se às universidades, onde ministrava cursos, e aos contatos internacionais, no sentido de denunciar as prisões e as torturas que aqui se cometiam e que não eram denunciadas pela grande imprensa, seja em virtude da censura, seja por causa da conivência. Viajei, algumas vezes, ao exterior, para cumprir o papel que me cabia.

I - Como se deu a sua entrada justamente na área internacional, articulada pelo Partido Comunista, ao tempo da ditadura militar?

JN - Há uma série de fatores que contribuíram para isto. Vou resumir em dois ou três: a minha frustrada carreira diplomática: a minha condição de professor universitário e jornalista, que facilitava viagens semi-clandestinas e as ligações que, por acaso, mantinha com pessoas e grupos, que depois do golpe militar, empenharam-se nessa área. A minha ligação com os militares dera-se, efetivamente, por ocasião da campanha de Lott e Jango, para a presidência da República, da qual participei ativamente, em Minas Gerais. O grupo de militares, de tendências nacionalistas e socialistas, que se aglutinava de maneira especial em tomo de Edna Lott, filha do candidato e depois parlamentar, com grandes serviços prestados ao país, estreitou relações comigo. E, até hoje, sem decepções de ambas as partes, temos profunda identidade e relações de afetividade. São muitos a quem estimo, mas vou destacar apenas três: o general Nelson Wernech Sodré, o brigadeiro Fortunato Câmara de Oliveira e o coronel Kardec Leme. Inteligentes, sérios, dedicados, organizados, estes homens representaram importantíssimo papel na resistência e na lula pela redemocratização do país, com grandes sacrifícios pessoais.

1 - E outras pessoas ou grupos?

JN - Conhecí em Belo Horizonte, quando trabalhava em jornalismo, um colega de imprensa que era militante do Partido Comunista e participava das mesmas causas que eu. Ele saiu da capital mineira antes do golpe e foi trabalhar na ONU. no setor de comunicação social, mais exatamente, no escritório do Rio de Janeiro. Depois de 1964. também no Rio, rearticulei-me com ele. Era homem de confiança de Prestes, de Giocondo. de Marco Antônio e hospedava em sua casa o Orlando Bonfim, o dr. Saad. o Elson Costa. Pois não é que este cara passou para o outro lado - SNI. CIA, os cambaus - e entregou todo mundo? Em consequência desta traição, muitos foram presos e assassinados. Pelos jornais (Jornal do Brasil. que lhe dedicou muitas colunas), delatou tudo. Uns dois ou três meses antes da delação, por vias transversas, soube que o homem (a quem, inclusive, salváramos do câncer no intestino) era espião. Avisei a direção do partido, mas acredito que o aviso não chegou ao seu destino, chegou tarde, ou não foi levado a sério.

I - Qual o nome do traidor?

JN - Adauto Alves dos Santos. Não sei se ainda está vivo. A última notícia que tive dele, há anos, é de que trabalhava em Brasília, depois de ter passado alguns anos na Europa, sob segurança dos órgãos de informações.

I - E como se davam as missões internacionais da resistência no sentido de denunciar os crimes e as torturas cometidas no Brasil e para salvar vidas?

JN - Como já disse, não era organicamente ligado ao Partido Comunista e. talvez este fato me houvesse preservado e permitido dar uma contribuição contínua à resistência e à causa democrática. O partido fazia o que podia, mas as condições de clandestinidade em que se mantinha obrigavam-no a estabelecer um sistema de segurança burocrático. Então valia muito a criatividade daquele que com ele colaboravam. E as relações, fora de um contexto político, que as pessoas mantinham com gente que não era comunista, não era socialista, mas não aceitava a ditadura militar e os seus métodos.

I - Dê-nos exemplo concreto.

JN - Quando viajei pela primeira vez à Europa, para cumprir a missão que me fora dada. fui recebido em Paris por um grande cientista e um grande democrata que trabalhava no Instituto Pasteur. Ele me colocou em contato com os comunistas e os democratas franceses e estes facilitaram a tarefa. Em Roma, um padre que fora meu colega e meu amigo na PUC, e que trabalhava no Vaticano, ajudou muito também e indicou-me o nome de uma nossa ex-aluna, cujo marido desempenhava funções diplomáticas em Londres e que até hoje é um dos luminares da nossa diplomacia. Segui para a Inglaterra e lá tive a melhor acolhida e apoio. E de repente você percebia que existia uma rede de resistência democrática, muitos não sabendo o que os outros faziam, mas todos empenhados no mesmo objetivo: salvar vidas humanas, denunciar as prisões arbitrárias e as condições em que viviam os prisioneiros políticos. E o prazer maior vinha quando você lia nos jornais as denúncias e quando você sabia que alguém fora salvo da morte, em parte por este trabalho anônimo, clandestino, sujeito a muitos riscos. E mais ainda, quando você percebia que as associações humanitárias e democráticas de lodo o mundo - Europa, Ásia, Estados Unidos, América Latina - empenhavam-se na mesma causa.

I - Mas como ficava os seus compromissos quotidianos de trabalho, aqui no Brasil, quando você se ausentava?

JN - Em geral, os colegas intuíam e ajudavam, porque sabiam do imperativo do sigilo e da clandestinidade. Para outros, amigos mais despolitizados. inventavam-se histórias loucas de paixão, a que não se conseguia fugir. Mas muitos falhavam, como foi o caso de uma assistente minha, futura esposa de um ex-governador de Estado, mas que, provavelmente por não saber as razões do sumiço - e nenhuma culpa tiveram disto - supunham que estávamos gazeteando e deixavam, revoltadas, de nos substituir no cumprimento dos compromissos assumidos.

I - Cite algum exemplo de trabalho específico, na área universitária, de que você tenha participado.

JN - No final da década de 1970, vários companheiros, professores universitários, chegamos à conclusão de que se tornava necessário organizar a categoria em torno das suas reivindicações profissionais e políticas Então fundamos a primeira Associação de Docentes, na PUC do Rio de Janeiro, da qual tive a honra de ser o primeiro presidente. Depois, a da UFF e concomitantemente, a da UFRJ e UERJ. Acredito que o exemplo da PUC tenha sido importante. Além de reivindicarmos espaço, apoiávamos sempre os movimentos populares e elaboramos alguns documentos importantes sobre educação brasileira. Como as associações multiplicaram-se por todo o país. os seus representantes reuniram-se em São Paulo, em 1978 no campus da USP e depois encontramo-nos em Salvador. Bahia, no campus da UFB. E daí nasceu a Associação Nacional de Docentes (ANDES) depois transformada em sindicato nacional. Interessante observar que à mesma época, vários professores universitários empenharam-se na formação de associações de moradores de bairros e daí fundamos depois de várias reuniões que fizemos no Colégio S. Vicente de Paula a primeira associação de moradores do Rio de Janeiro, se não me engano, a do Cosme Velho. Dela participavam figuras de projeção nacional, como o ator Hugo Carvana e o cineasta Zelito Viana, moradores no bairro.

I - Como se deu a sua ligação com o nosso grupo do INVERTA ?

JN - Antes da fundação do jornal, já colaborava com o grupo de socialistas e comunistas da Baixada Fluminense, particularmente o de Nova Iguaçu, onde Luiz Carlos Prestes, a quem sempre admirei e que era meu amigo, tinha enorme prestígio. Fazia palestras, participava de reuniões cívicas e populares, doava livros etc. Alguns dos jovens integrantes do grupo, o Aluísio, por exemplo, eram meus alunos na Universidade e dedicaram-me, sempre, especial carinho. Achei e acho a sua luta válida e digna e resolvi colaborar, como colaboraria com qualquer movimento como este, de profundo sentido idealista e humanitário. Mesmo que as posições políticas nem sempre coincidam, mesmo que as feições e a linha do jornal não sejam simetricamente iguais aos meus projetos, não importam. O fundamental é que o pessoal do INVERTA, sem quaisquer intenções de lucros, sacrificando, muitas vezes, a sua vida pessoal, cumpre importante papel em nossa sociedade e em nossos dias. Estão fazendo HISTÓRIA. Querem coisa mais gratificante para nós, seres mortais, que daqui a pouco não existiremos mais?

I - Deixe a sua mensagem?

JN -A nossa luta é difícil. Temos como adversários, as grandes potências do mundo, o capitalismo internacional, com as suas empresas arraigadas no solo brasileiro e atuantes. Controlando os meios de comunicação, bloqueando os postos de trabalho aos que a ele se opõem, envenenando e conduzindo a opinião pública. Boa parte da juventude compõe-se de mauricinhos e patricinhas, interessados apenas em prosperar e comprar apartamentos e carros do último tipo. Mas, em compensação, temos Cuba, temos Vietnã, temos a China e temos um futuro por que lutar. Sem falar neste novo movimento estudantil, que está saindo às ruas, para combater pelas grandes causas, como a da Vale, e as sementes renascem, as idéias multiplicam-se, como que perpetuam as nossas. As esperanças estão acesas. E das cinzas do presente nascerá uma civilização baseada na dignidade do ser humano, da justiça social e das igualdades possíveis. Não importa que os brasileiros, por muitas décadas, continuem pobres. Pobreza não é pecado. O importante é que tenhamos pão para todos, abrigo, saúde, transporte para todos, educação para todos. Quanto ao resto, principalmente o amor e a alegria, estes sempre tivemos e teremos de sobra. Mesmo que nos prendam e que nos batam.

JORNAL INVERTA – Nº 113 - 18 a 24/06/1997

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