Quem faz o movimento? Domar Campos

Domar Campos faleceu em dezembro de 2006, reproduzimos aqui, entrevista concedida ao Jornal Inverta nº 71

Domar Campos é um daqueles militantes, que durante sua vida dedicou-se às causas nacionais e à luta pela soberania do povo brasileiro. Junto com os Jornalistas e de intelectuais brasileiros, esteve presente no ISEB, militando na luta pelas estatais, na construção da base da economia brasileira. Estes, Junto com o grupo de Barbosa Lima Sobrinho e todos os grandes personagens da história brasileira, são símbolos da resistência de nosso povo por dias melhores. Hoje, Domar Campos continua militando ativamente na ABI, como diretor. Além de ter exercido durante toda sua vida a atividade jornalística, mesmo durante o regime de 64, com o decreto do AI-5, quando perdeu o emprego e funções, hoje continua presente junto ao nosso povo. E com esta figura que fazemos a entrevista deste número.

I - Domar, fale aos leitores do INVERTA um pouco de como foi o surgimento de sua militância.

DC - Desde rapaz tive uma preocupação pela coisa social, que me levou a prestar atenção nos movimentos da classe operária, nos contrastes da classe rica com as condições do povo pobre cheio de necessidades. Isso me levou a aceitar com facilidade a doutrina marxista, a luta de classes, a existência de uma sociedade de classes, que é uma das definições de Marx mais perfeitas para definir sociedade liberal e capitalista. Mais tarde, um pouco mais adulto, já com 20 anos, me alistei nas Forças Francesas, Francia Libre.

I - O que o levou a se alistar nas Forças francesas?

DC - Fui através da clandestinidade, porque o Brasil estava a favor do Eixo, das potências fascistas. Fui para Montevidéu, no Uruguai. Lá trabalhei no consulado francês, Francia Libre. Não cheguei a ir para a guerra, porque o voluntariado era para quem tinha uma especialidade concreta. Voltei depois de algum tempo. Não fui para a guerra e me casei no Uruguai.

I - O que aconteceu quando você retornou ao Brasil?

DC - Aqui continuei contatos anteriores, como o Geraldo Jociner, um amigo meu, juiz comunista muito conhecido no Rio. Através de Virgílio Alberto, que me mandou fazer trabalhos no Uruguai e na Argentina. Fui trabalhar na Conjuntura Econômica, onde conheci Richard Bergson, um dos maiores economistas do mundo, judeu exilado no Brasil durante a guerra. Ele marcou minha trajetória, era um homem de altíssima competência e tinha muita influência no Brasil. Na Conjuntura, conheci Jesus Soares Pereira, um dos grandes impulsionadores da política petrolífera no Brasil. Raimundo Araújo Vásquez, que foi ministro do exterior brasileiro e é um grande amigo, também militante de esquerda. Conheci Inácio Rangel, grande teórico, desaparecido há pouco e autor de A Inflação Brasileira, melhor livro sobre a inflação no Brasil. Essas pessoas foram amigas minhas, entre outros, Rômulo de Almeida, que trabalhou com Getúlio Vargas no Catete, na primeira elaboração da Lei 2.004, que criou a Petrobras. Conheci outras pessoas, como Nelson Werneck Sodré, um dos fundadores do ISEB. Tudo isso me deu algum nome na imprensa, colaborando, como cronista, sobretudo na Última Hora. Fiz um trabalho mais livre. O que me tomou um pouco vitorioso na parte politica.

I - Então sua militância se deu nesse período?

DC - Minha militância se resumia à militância intelectual. Nunca fui ativista. Participei de duas ou três reuniões do Partido Comunista em Niterói, mas não me dizia nada. Eu era outra coisa, embora fosse aquilo mesmo. Numa ocasião houve um debate à noite toda sobre o combate aos mosquitos em Icaraí. Pensei comigo: “Preciso fazer outra coisa”. Havia coisas que o partido tinha que fazer e retardava muito, a coisa da intelectualidade, que provocou aquela rivalidade: os operários nos chamavam de elitistas e a intelectualidade chamava os operários de obreiristas.

I - Como você analisa este período que você vivenciou no Brasil?

DC - Houve uma política econômica muito ativa e produtiva, a substituição de importações. Era produzir aqui o que se comprava fora. Isso transformou o Brasil, que hoje e uma nação muito mais forte. Estamos inclinados a não acreditar nisso, induzidos pela grande imprensa. O Brasil já e uma potência média. Digo isso com toda ênfase. Digo ao Barbosa Lima Sobrinho e ele sempre concorda comigo. Porque encheu espaços vazios. Trouxe a indústria automobilística, naval, metalúrgica, para uma nação, que antes da guerra era agrícola c importava gasolina em barril, só tinha uma refinaria no Rio Grande do Sul para refinar petróleo. Um país agrícola e atrasado e transformou-se numa nação industriai. Essa fase veio rodeada pelas ocorrências da guerra, gente chorando na Cinelândia por causa da queda de Paris. Havia aquele sentimentalismo. O risco que passamos. Os alemães tiveram prestes a ganhar a guerra. Se ganhassem, o sul já tinha nome, ia se chamar Alemanha Antártica. E tudo o mais que ocorreria de brutal no Brasil. Veio a guerra e a aliança com os Estados Unidos, porque os americanos necessitavam da Base de Notal. Em troca Getúlio negociou com um empréstimo, com tecnologia para criar uma grande siderúrgica, a Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN de Volta Redonda. Foi o grande empurrão que faltava a um país já sentindo a industrialização. São Paulo já se manifestava com o desejo industrialista. No final da guerra, o mundo dividiu-se em dois. As potências capitalistas não mandavam tão direta e absolutamente! no Brasil. Havia o outro poder, o poder soviético, que havia saído da guerra com uma vitória brilhante, na verdade, a grande vitória da guerra, a vitória sobre o Exército alemão. Foi mais fácil ao governo brasileiro negociar as empresas estatais, que não agradavam muito ao processo capitalista, mas tiveram que aceitar - a Eletrobras e a Petrobras foram sucessos absolutos. Surgiu depois a Vale do Rio Doce, consequência de um estado capitalista maior, mais forte, mais responsável. Me sinto orgulhoso de ter vivido essa época.

I - Você acredita que os fatos ocorridos nas décadas de 20, 30 c 40 e 2º Guerra Mundial provocaram uma mudança total na face do país? Grande parte do que nós temos hoje no Brasil advêm dessa transformação radical na estrutura econômica?

DC - O Brasil já vinha nesse processo desde 18 e 22, a rebelião dos 18 do Forte já foi uma especie de rebeldia. Um sentimento de que somos grandes. Sempre cito esse exemplo: nosso futebol era uma porcaria, mas já nos considerávamos o melhor do mundo, porque sabíamos que poderíamos chegar a ser o melhor do mundo. Aquela rebeldia já era isso. Somos o quê? O Exército Brasileiro e uma porcariazinha? Temos que fazer alguma coisa. Ai houve o 18 do Forte. Veio 22, 24 em São Paulo, a Coluna Prestes, que foi um espetáculo de demonstração de eficiência de tecnologia militar A Revolução de 24 em São Paulo foi superativa, o pensamento brasileiro vivendo forte. Depois 30, que já foi uma guerra civil. As guerras civis são produtivas, criativas. Trazem soluções imediatas. Gerou coisas novas que tiveram conseqncias interessantes mais tarde, como a legislação social de Getúlio Vargas. Depois houve a Ditadura de Vargas, que soube negociar durante a guerra, a base de Natal pela CSN, num momento importante, sem cedê-la. É preciso lembrar que a Espanha até hoje tem duas bases americanas, e nós não temos nenhuma. São coisas nacionais brilhantes, que não se destacam, porque a comunicação está entregue a uma imprensa comprometida ou confusa. Ela é a única a informar. A juventude só e movida, quando essa imprensa quer.

I – E o ISEB?

DC - O ISEB foi conseqncia dialética disso, logo depois, Osny Duarte Pereira. Nelson Werneck Sodré, Roland Corbesier, meu colega na ABL Álvaro Vieira Filho. Era um grupo paulista, inconformado, como eram os 18 do forte. Havia um outro grupo no Rio. Se correspondiam, criaram a revista e acabaram se juntando. Eram todos da grande burguesia, quase todos tinham dinheiro, eram rapazes intelectuais, de boa índole e se reuniam em hotel, pensão. Infelizmete não fiz parte desse grupo. Conheci todos na divisa Rio São Paulo, em Itatiaia, por isso o nome. Grupo de Itatiaia e uma coisa que devia ser comemorado no Brasil, assim como o 15 de Novembro, porque dali surgiram várias coisas importantes, como o ISEB que teve uma importância enorme. Durou pouco tempo. Fecharam o ISEB, alguns foram para a cadeia, outros apanharam, outros sumiram.

I - Que trabalho você desenvolvia no ISEB?

DC - Eu era professor de economia politica no ISEB, sucedendo a Inácio Rangel, em 63. A bomba estourou na minha mão. Não fui cassado, sofri um processo no Ministério da Educação e fui condenado expulso de todos os serviços públicos e da capital federal. Saiu o Al-5. Procurei um advogado amigo meu que na época estava cassado também - Marccllo Alencar - o atual governador do Estado do Rio de Janeiro. Saí na lista do Hélio Pelegrine juntamente com Elza Holfman, que chegou a dirigir o Serviço Econômico da ONU, agora está dirigindo o Serviço econômico do CEPAL. Fui condenado, depois anistiado. Fiquei aguardando as coisas que acabei ganhando do Banco Central. Era do Departamento Econômico e era professor do Ministério da Educação, agora estou aposentado.

I - O Grupo de Itatiaia, sintetizou um pensamento que cresceu durante as décadas de 30 e 40. Quando houve seu esfacelamento, ele serviu para o Brasil como resistência às idéias que passaram a predominar após o Golpe de 64, através de economistas oficiais do regime instaurado.

DC - O nosso grupo enfraqueceu-se bastante. Cada um continuou sua luta, porém ficamos sem força. O próprio Partido Comunista veio demonstrar depois que a paulada tinha sido forte. Ficamos no ostracismo. Nós jornalistas ficamos sem espaço. Trabalhei na parte econômica do Jornal do Brasil em 1964, que era a mais importante. Não levava 10 minutos sem ver a cara do coronel que comandava a censura dentro do jornal. A luta tornou-se extremamente difícil. E a esperança voltou a ser externa, que viesse através de exemplos soviéticos, de exemplos de potências socialistas, de partidos socialistas grandes da Europa. E esse exemplo não veio, ao contrário, lá também houve uma perda muno grande. Ficamos num mato sem cachorro. Isso tem durado praticam ente até hoje. Em determinados momentos até pioraram como a desintegração regional da União Soviética.

I - Como você definiria a situação da esquerda no momento atual?

DC - O momento atual e de uma renovação de esperança, ainda cm consequência não do nosso esforço, mas do esforço do Partido Comunista Francês o Partido Comunista Italiano. Partido Socialista Espanhol, etc. Estão todos firme, lutando, mais em função dos erros que continuarão sendo cometidas pelo novo sistema, que não tem nada de novo. É o liberalismo ao extremo. É como se estivéssemos retrocedendo. Tenho um amigo filósofo, que diz o seguinte: eles não querem deter o avanço das conquistas sociais, querem tirar o que já foi alcançado. Em fez de oito horas de trabalho, trabalhar dez, não ter décimo terceiro. Os contratos de trabalho já estão ai visivelmente é uma coisa extremamente perigosa.

I - Estão abolindo a carteira de trabalho…

DC - Pois é. Sem a carteira de trabalho e cidadão não é nada. O liberalismo funciona com base num ponto da teoria econômica: a moeda, o pacto monetário. Náo leva em conta a potencialidade notável do Brasil, que talvez seja a maior do mundo. A única inspiração deles é a moeda. Portanto, a primeira lese alternativa nossa deve ser a negação disso e ter fé na potencialidade nacional, cuidar da moeda certamente, mas ela é secundária. Temos que fazer política de desenvolvimento, criar empregos, criar as coisas que surjam por todos os lados do solo brasileiro, ter audácia um plano inteligente, com critérios de prioridades rigorosos, feito por uma comissão de alto nível. Mas para tudo isso é preciso uma coisa chamada poder. Eis o impasse. Com que poder vamos destruir este poder para adotar essas coisas?

I - Temos feito uma pesquisa que demonstra que esse movimento de retorno do capitalismo a uma fase inicial vai despertar todas aquelas potencialidades que despertaram anteriormente, durante a crise de 29. Só que voltam sob nova forma. Não vai se reproduzir a crise de 29, mas vivemos uma conjuntura que se encaminha a largos passos para essa situação.

DC - Você teorizou brilhantemente o meu pensamento.

I - O que poderíam esperar hoje os que lutam por uma pátria soberana, por uma grande economia, uma postura do Brasil semelhante a que ocorreu no 18 do Forte, em 22?

DC - É a história de ter o poder. Há muitas dificuldades para se construir um poder capaz de substituir esse. Porém há setores que estão se manifestando. Os intelectuais percebem mais facilmente isto porque são analistas, mas não representam um grupo de força. Mas os militares das três armas, também estão pensando nisso. Conversei com mais de um, e eles também estranham essa dualidade entre o potencial extraordinário do país e a terrível alienação. Esse desânimo da população impressiona. Sentem que se isso continuar nos levará ao fundo poço. Mas, como dizem os alcóolicos anônimo, o fundo do poço pode levar a morte, mas pode levar a reação. Essas forças estão se formando dialeticamente. A sociedade vai acumulando razões. Há uma alienação com as potências dominante, mas há também um começo de reação. A própria imprensa vem se manifestando. Penso que deveria haver um cartel da imprensa alternativa. Disse isso uma vez ao governador Leonel Brizola: “para a esquerda ganhar uma eleição é preciso ter comunicação. Precisamos ter jornais, televisões, rádios em São Paulo Rio de Janeiro, Recife”. Precisamos quebrar esse monopólio. Nosso primeiro esforço deve ser contra esse monopólio terrível.

Jornal Inverta nº 71 – 1º a 15 de abril de 1997

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