A “Caça às Bruxas” no Mato Grosso do Sul

"A legalização do aborto, que deve ser público e gratuito, é importante para que seja possível, no mínimo, a escolha de interromper-se a gravidez sem ricos à saúde das mulheres."

“Eu aborto, tu abortas: somos todas clandestinas”


Por: Eleonor Alves e Tereza Maria



A “Caça às Bruxas” no Mato Grosso do Sul



Cuidado! Se você é brasileira e já fez um aborto em algum momento de sua vida, CUIDADO! Você pode ser presa!

Por mais absurdo que isso possa parecer, é sério. Aconteceu com quase 10.000 mulheres no Estado do Mato Grosso do Sul.

Atualmente a legislação prevê para esses casos pena de detenção que varia de um a três anos segundo o Código Penal Brasileiro de 1940, artigo 128. Para o médico ou outro responsável pelo procedimento a pena pode ser de um a quatro anos de reclusão.

E lá pelas bandas de Mato Grosso do Sul resolveram levar isso a ferro e fogo. Todas as autoridades estão unidas – delegados e delegadas, prefeitos e governadores, Ministério Público, rede televisiva, etc. – para colocar atrás das grades ou punir com “penas alternativas” 9.898 mulheres que, negando o dom dado por Deus de darem à luz, resolveram cometer este ato de tamanha crueldade.

Segundo a Carta Aberta de repúdio à esta ação do poder judiciário, redigida por diversas entidades feministas, “O pesadelo de quase 10.000 mulheres que passaram pela Clínica de Planejamento Familiar de Campo Grande, nas duas últimas décadas, começou desde que a TV Morena (afiliada da Rede Globo no estado) veiculou reportagem, gravada com câmera oculta, onde a psicóloga da clínica foi filmada cobrando R$ 5 mil pela realização da interrupção de gravidez. A gravação foi ao ar no dia 10 de abril de 2007.” Depois deste “furo de reportagem”, veiculado do dia 12 de abril de 2007, os deputados federais Roberto Gouveia (PPS) e Paulo Bassuma (PT) e o presidente do Movimento Nacional em defesa da Vida, solicitaram à Procuradoria do Estado do Mato Grosso do Sul abertura de um processo criminal contra a médica e proprietária da clínica.

A partir daí, estas mulheres não tiveram mais sossego. A Delegada Regina Márcia R. B. Mota, indignada com o que viu na televisão e com uma autorização judicial para um mandato de busca e apreensão na clínica, concedida pelo juiz Aloísio Pereira dos Santos - hoje responsável pelo caso – , “estoura” o consultório no dia 13 e apreende todos os prontuários das mulheres que por ali passaram – tendo abortado ou não.

Esse fato desenrola-se até hoje. O Ministério Público acatou as denúncias e encaminhou o processo para o Tribunal de Justiça, o qual nomeou o juiz já citado para o caso. Neste mesmo Tribunal, os nomes destas mulheres ficou à disposição de quem quisesse, podendo serem vistos inclusive pela internet! Os nomes só foram retirados depois da intervenção de movimentos de mulheres de Campo Grande, apenas na semana do dia 28 de maio.

Esta é a primeira vez que mulheres são acusadas de terem praticado o aborto sem flagrante. O processo contra essas mulheres está baseado em fichas médicas e prontuários. Este fato pode abrir precedentes para que outras mulheres, em outros Estados do país, possam ser indiciadas por terem suas fichas encontradas em alguma clínica descoberta pela polícia (quem sabe com a ajuda de uma outra emissora de televisão?).

Por enquanto, 25 mulheres já foram formalmente acusadas. Destas, ao menos 5 estão cumprindo “penas alternativas”, proibidas de sair da cidade e prestando trabalhos gratuitos em creches e escolas da cidade, o que, segundo o excelentíssimo juiz, as faria pensar melhor no crime praticado...

No dia 28 de maio, Dia Mundial da Saúde da Mulher, ocorreram atos em todo o país prestando solidariedade às mulheres do Mato Grosso do Sul.

Segundo militantes da Marcha Mundial de Mulheres do Mato Grosso do Sul, entrevistadas no ato em São Paulo, as organizações feministas do Estado estão se organizando e dando assessoria para as indiciadas. Porém apontam como um dos grandes entraves para uma maior mobilização a forte perseguição sofrida pelos movimentos populares do estado e em específico da cidade de Campo Grande por parte do governo local. No entanto, se as organizações não protestarem publicamente, nada garante que o debate a respeito da legalização do aborto não só não avance, mas retroceda e mais e mais mulheres serão punidas por não poderem decidir sobre suas vidas e seus corpos


Alguns dados

Segundo pesquisa divulgada no ano passado pela Organização Mundial de Saúde, seis milhões de mulheres praticam aborto induzido na América Latina todos os anos. Destas, 1,4 milhão são brasileiras e a cada 7 minutos uma mulher morre, vítima de abortamento inseguro e clandestino. Provavelmente, dentre as que morrem ou sofrem sérias lesões físicas, a maioria é pobre, já que abortar em uma clínica (clandestina) custa entre R$1.500,00 e R$ 5.000, 00, dependendo do mês de gestação.

Dados do Ministério da Saúde nos mostram que a maioria dos municípios em nosso país não dispõe de métodos contraceptivos adequados. Segundo a pesquisa, somente 53% dos municípios oferecem camisinha e 47%, pílula. Ou seja, nestas cidades, se você deseja utilizar métodos contraceptivos, terá que pagar por eles.

Ainda segundo este Ministério, por ano, cerca de 250 mil mulheres são internadas no Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o País. O aborto está entre as principais causas de mortalidade materna no Brasil já há mais de 20 anos, oscilando entre a terceira e a quinta causas, ao lado de hipertensão, hemorragias, infecções e cardiopatias.

Pode-se concluir, portanto, que esta é uma questão de saúde pública. E quem mais sofre com a criminalização do aborto e falta de políticas públicas em planejamento familiar são as mulheres trabalhadoras, mulheres pobres, que necessitam recorrer a métodos arriscados contra a gravidez indesejada; que não possuem, muitas vezes, acesso a métodos anticoncepcionais ou não sabem utiliza-los. Mulheres que pagam com a própria vida o preço de não poderem decidir sobre seus corpos, em uma sociedade que faz recair sobre seus ombros a obrigação da maternidade, custe o que custar.

Mas, tudo isso, por quê?



Aborto e ideologia

A questão do aborto é causa de muita polêmica nos dias atuais. Vários pontos de vista são apresentados, o que torna difícil um posicionamento para quem essa questão mais lhe interessa: as mulheres, sobretudo as mais pobres. Por essa razão, é necessário desmistificar certos valores e perceber que ser a favor ou contra a legalização do aborto não é algo suficiente se não entendermos as raízes dos problemas, pois existem vários caminhos para chegar-se a uma mesma conclusão, e as mulheres devem encontrar o mais coerente para alcançar a sua emancipação. Determinadas propostas que se fazem em relação à vida das mulheres subordinam suas necessidades a outras cujo controle não lhes diz respeito.

Certos grupos da classe dominante defendem a legalização do aborto, porém os argumentos utilizados por eles se convertem contra as próprias mulheres e a classe trabalhadora em geral. Um deles é o de que a legalização do aborto seria útil para resolver o problema da superlotação das cidades, por exemplo. O argumento seria o de que se as mulheres tiverem menos filhos, a população das cidades diminuirá, permitindo-se o aumento da qualidade de vida de todos. Esconde-se, dessa maneira, que a concentração de pessoas nas cidades é um produto da sociedade capitalista, pois muitos trabalhadores e trabalhadoras deixaram e ainda deixam sua terra de origem em busca de emprego, de condições de vida melhores, uma vez que o isolamento de certas áreas e o poder das classes dominantes locais dificultam a sobrevivência. Além disso, esconde-se o papel que cumpre o êxodo rural para o desenvolvimento do capitalismo, o qual permite a competição entre os trabalhadores assalariados e, portanto, a manutenção dos salários a um valor igual ou mesmo abaixo ao da força de trabalho. Essas questões não são mencionadas e toda a culpa do problema demográfico recai sobre as mulheres.

A preocupação da classe dominante não é, evidentemente, a qualidade de vida da população, mas sim a reação da classe trabalhadora, que se expressa, por exemplo, por meio da criminalidade, a qual é justificada por um instinto natural violento ou pela má educação dada pelos pais, principalmente pela mãe, que tem mais contato com os filhos do que o pai, e por isso deve “dialogar”, “conscientizar”, em outras palavras, preparar os filhos para o trabalho. Mulheres que não souberam criar seus filhos teriam falhado como mães, não teriam ensinado valores básicos como a honestidade e a perseverança. Ocupadas com o trabalho, sem tempo para criar adequadamente seus filhos, a legalização do aborto não deixaria que mais futuros marginais nascessem. A responsabilidade pela educação dos filhos continua sendo principalmente das mães; a sociedade em geral teria obrigação de preocupar-se somente com o trabalho a ser explorado, mas não com o sustento e educação de crianças e adolescentes, pois as creches e escolas públicas não são prioridade para o Estado burguês.

Ao mesmo tempo em que alguns defendem a legalização do aborto da maneira descrita acima, outros acreditam que “dispensar” as mulheres da responsabilidade sobre as crianças é uma contradição, pois as mulheres não podem perder seu instinto materno, devem estar a favor da vida. Parece que quem realiza o aborto uma vez nunca terá um filho posteriormente, as mulheres degeneradas são incapazes de amar uma criança, devem ir para a cadeia – como se a decisão pelo aborto não fosse difícil e dolorosa em uma sociedade que idealiza de toda maneira possível a maternidade. Exalta-se a mulher sofredora, que luta para criar sozinha seus filhos, mesmo que a família viva na miséria – que não é causada de maneira nenhuma pela incapacidade da mãe, mas sim pela lógica capitalista de geração de riquezas para a obtenção de lucro, e não para o bem-estar da população.

Certas pessoas dizem que os métodos contraceptivos são até aceitáveis, ainda que incitem uma vida promíscua, mas o aborto de jeito nenhum é aceitável. A mulher deve aceitar o que o destino lhe reservou, e não se opor contra ele. Desse ponto de vista, a sexualidade da mulher continua tendo uma função unicamente reprodutiva, idéia que além de hipócrita torna-se cada vez mais ultrapassada no momento atual, porém resiste por causa da preocupação de quem é o pai biológico da criança, algo fundamental para o direito à herança, ainda que seja pequena no caso da classe trabalhadora. Os homens têm mais liberdade para relacionar-se com mulheres fora do casamento, mesmo que parte da sociedade considere essa prática condenável, porém muito menos condenável do que no caso inverso, isto é, mulheres que têm relacionamentos fora do casamento. Se o homem não é o pai biológico, não tem nenhuma obrigação para com a criança, e a mulher é punida por não ter sido fiel. O homem, entretanto, não é punido, malvisto por ter traído sua mulher. Ao contrário, é algo natural, característico do ser masculino. Isso demonstra como as mulheres devem responsabilizar-se pelas crianças que vêm ao mundo, pois os homens em geral não têm essa obrigação se não tiverem laços sangüíneos com a criança. Desses laços a mulher não poderia escapar, está ligada demais ao filho, diferentemente do homem. A mulher só escapa dessa responsabilidade de maneira digna, segundo os valores da sociedade capitalista, quando morre. Pelo motivo de repassar o problema ao Estado burguês, que terá gastos maiores, os orfanatos são demonizados, considerados em si mesmos impróprios para as crianças, quando na verdade os órfãos apenas terão uma infância diferente das outras pessoas. O problema real é o descaso com esses espaços e a estigmatização da sociedade contra eles.

As mulheres e os homens da classe trabalhadora devem entender a questão do aborto não como solução para a pobreza, nem como degeneração das mulheres. É preciso entender de que forma o controle do corpo feminino está fora da decisão das próprias trabalhadoras. Aponta-se o comportamento das mulheres como causa de problemas estruturais da sociedade, encobrindo-se a dificuldade de fornecer todos os meios necessários à vida de uma criança e passando, como se fosse algo natural, essa carga sobre os ombros das mulheres. A legalização do aborto, que deve ser público e gratuito, é importante para que seja possível, no mínimo, a escolha de interromper-se a gravidez sem ricos à saúde das mulheres.