Centenário de tradução do Manifesto Comunista para Esperanto
Centenário de tradução do Manifesto Comunista para Esperanto
Há 100 anos, o Manifesto do Partido Comunista era traduzido para o Esperanto.
Há exatos cem anos, o Manifesto do Partido Comunista era traduzido pela primeira vez em esperanto. Era a primeira de três famosas traduções desse documento fundamental, que traz a assinatura de Marx e Engels.
Tratava-se de uma versão bilíngüe, esperanto-inglês, baseada na edição inglesa revista pelo próprio Engels, sendo lançada na cidade industrial de Chicago. O tradutor, Arthur Baker, jornalista norte-americano, foi o responsável pelo primeiro periódico esperantista nos Estados Unidos da América, La Ameriko Esperantista. A centenária edição em esperanto do Manifesto Comunista saiu com 65 páginas, tendo recebido o selo da editora Charles H. Kerr and Company. A segunda versão do Manifesto Comunista para o esperanto saiu em 1923, pela associação esperantista SAT (Sennacieca Asocio Tutmonda: Associação Mundial Internacionalista), ligada ao movimento operário. O tradutor da segunda tradução foi o austríaco Emil Pfeffer, que se baseou na versão alemã. A terceira tradução para o esperanto é sem dúvida a mais aprimorada. Saiu em 1990, pelas Edições Progresso de Moscou, tendo como terceiro tradutor o lingüista alemão Detlev Blanke, que fez um exaustivo trabalho de glosa não apenas das versões anteriores em esperanto, como também com os textos originais revistos por Engels, e tudo em esperanto contemporâneo. Hoje, com a rede internacional de computadores, qualquer interessado pode baixar e apreciar o brilhante trabalho de Blanke.
Voltando a Arthur Baker, o primeiro tradutor, sabe-se que ele colocava o esperanto ao lado das grandes descobertas humanas, como o domínio tecnológico da máquina a vapor e da eletricidade, o fonógrafo e o cinema. Para ele, o esperanto estava pronto para funcionar como verdadeiro catalisador na luta do trabalho contra o capital, cujo campo de batalha transcende as fronteiras dos países. E não é outra a idéia do Maniferto Comunista, cuja frase final passou a ser o lema da luta internacionalista das classes trabalhadoras: "Proletários de todo o mundo, uni-vos!" ("Proletoj el ĉiuj landoj, unuiĝu!")
Tal como Baker, muitos marxistas consideraram o esperanto numa perspectiva revolucionária. Assim entendida, a língua internacional proposta por Zamenhof viria a calhar como instrumento de integração da classe operária para além das fronteiras nacionais. Lançado num livreto editado em russo, em 1887, o esperanto é uma língua planejada, de gramática simples, baseada em apenas dezesseis regras essenciais, mas de potencial comunicativo equivalente ou superior ao das línguas nacionais, já que serve tanto para a arte literária como para a ciência, dispondo de um léxico extremamente preciso e continuamente ampliado em fórum internacional. Seu idealizador, o médico russo-polonês Ludwik Łazarz Zamenhof (Luís Lázaro Zamenhof), homem sensível aos conflitos entre os povos, via na idéia de uma língua internacional uma solução para o bíblico dilema da Torre de Babel.
Na prática, propunha-se uma nova cultura, oposta às disputas do imperialismo, cuja crise, naquele contexto, resultou na eclosão da Primeira Guerra Mundial. Zamenhof, ao iniciar o esperanto, levou em consideração sua experiência própria. Judeu nascido em Bialistoque, cidade então sob domínio da Rússia czarista e hoje pertencente à Polônia, ele foi testemunho de violentos conflitos étnicos. Falava-se, na região em que ele nasceu, o russo, como língua oficial, além de outras línguas, todas sujeitas a forte repressão, como o polonês e o iídiche. Ironicamente, o pacifista Zamenhof morreu em 1917, em meio à Primeira Guerra Mundial.
Por trazer no conteúdo a superação do militarismo nacionalista e na forma uma língua de fácil aprendizagem, o esperanto logo foi adotado por muitas organizações políticas de esquerda. Difícil foi sua aceitação pelas elites, na época inclinadas para o francês, que fazia as vezes de idioma internacional. Exemplo da rejeição burguesa ocorreria, após a Primeira Guerra Mundial, quando o movimento esperantista buscava a adoção do idioma pela Liga das Nações. Opunham-se ao esperanto, evidentemente, algumas autoridades francesas e diplomatas que preferiam a nobreza do idioma de Paris àquela língua que facilmente era dominada até pelas massas populares.
No período da Segunda Guerra Mundial, o movimento esperantista sofreu sérias baixas. Na Alemanha nazista, a repressão aos esperantistas era justificada por sua vinculação com o comunismo internacional, fato agravado pela origem judaica de seu iniciador. Dentre os adeptos do esperanto, não escaparam do extermínio os filhos de Zamenhof, que foram assassinados ao lado de seus compatriotas poloneses.
A relação entre esperanto e movimento dos trabalhadores estabeleceu-se efetivamente nos primeiros anos do século vinte. Em 1907, surgiu a Brita Ligo de Esperantistaj Socialistoj (Liga Britânica dos Socialistas Esperantistas). A partir de 1910, muitas associações e respectivos periódicos sugiam pela Europa, com a mesma finalidade. São dessa época as folhas operárias Antaŭen (Para Frente, na Alemanha), Arbeider-Esperantist (Trabalhador Esperantista, na Holanda), Kulturo (Cultura, na Tchecoslováquia) e Le travailleur Esperantiste (Trabalhador Esperantista, na França).
Nesse contexto, um fato dos mais significativos foi a transformação da associação esperantista operária Liberiga Stelo (Estrela Libertadora) em SAT (Sennacieca Asocio Tutmonda: Associação Mundial Internacionalista), em agosto de 1921, em Praga. A SAT, que contou com o apoio da União Soviética, existe até os dias de hoje, sendo inclusive responsável pelo mais importante dicionário de esperanto, o PIV (Plena Ilustrita Vortaro). A SAT rompeu com a idéia da neutralidade do esperanto. Segundo a SAT, o esperanto deveria ser usado pelo movimento operário como uma língua auxiliar na relações internacionais do interesse da classe trabalhadora e na educação da classe operária com a tradução de textos produzidos em língua estrangeira, até então consumidos por uma minoria esclarecida. Desde os primeiros anos de atividade, a SAT dedicou-se ao campo editorial, popularizando em esperanto obras literárias de valor internacional, como o Faŭsto, de Goethe, o Kandido, de Voltaire, dentre muitas outras, doutrinárias, como o Komunista Manifesto, de Marx e Engels (1923, tradução de Pfeffer), Ŝtato kaj Revolucio, de Lênin (tradução de Demidjuk), Naciismo (Nacionalismo), de Lanti (fundador da SAT), Etiko (Ética), de Kropotkin, ABC de Sennaciismo (ABC do Internacionalismo), de Kolĉinski, e mesmo trabalhos de propaganda, como o Proletaria Kantaro (Cancioneiro Proletário), com 74 cantos e respectivas partituras.
Mais recentemente, em 1970, organizou-se o IKEK (Internacia Komunista Esperantista Kolektivo: Coletivo Internacional Comunista Esperantista). Originado na Áustria, o IKEK recebeu o apoio do Partido Comunista local e é filiado à UEA (Universala Esperanto-Asocio: Associação Universal do Esperanto, com sede na Holanda, a mais importante organização esperantista).
Na União Soviética, houve grande entrosamento dos intelectuais esperantistas com o movimento revolucionário. Vale lembrar que o regime czarista reprimira o movimento, censurando muitas de suas publicações, inclusive as de mero cunho didático, apesar do aberto apoio de nomes prestigiados, como o de Tolstoi. Como resposta, os esperantistas compuseram as fileiras de oposição ao regime czarista. Com a Revolução de 1917, institucionalizou-se o movimento esperantista soviético com a fundação, em 1921, da SEU (Sovetrespublikara Esperanto-Unio: União Esperantista das Repúblicas Soviéticas). Entretanto, a partir da disputa pela sucessão de Lênin, muitos esperantistas foram confundidos com trotskistas, sendo presos e fuzilados, sendo reabilitados somente na era Kruchov.
No Oriente, esperanto chegou a vários países, destacando-se na China, desde a primeira década do século vinte. Estudantes chineses simpatizantes do anarquismo publicaram em París, em 1907, o periódico La Nova Tempo (O Novo Tempo). No próprio território chinês, o esperanto ganhou a simpatia de intelectuais influentes na época. Com o advento da república, em 1912, o esperanto foi introduzido nas escolas chinesas. Nesse período, publicaram-se os periódicos La Ĥina Socialisto (O Socialista Chinês) e La Voĉo de la Popolo (A Voz do Povo). Vindo a contra-revolução de 1913, houve grande repressão à esquerda, não escapando, conseqüentemente, o movimento esperantista. Passada a Primeira Guerra, o quadro negativo foi revertendo-se. Em 1921, houve proposta favorável ao esperanto feita pela Conferência Nacional dos Educadores. Nesse mesmo ano, o soviético Eroŝenko, lendário escritor e educador cego, promoveu curso na Universidade de Pequim. Em 1931, en Xangai, era fundada a Ĉina Protela Esperantista Unio (União Proletária Esperantista da China). Após a Revolução Comunista, o esperanto manteve seu prestígio entre os chineses, lembrando-se que, em 1916, Chen Duxiu, um dos fundadores do Partido Comunista da China, deu início ao apoio dos comunistas chineses ao esperanto, quando defendeu, em artigo escrito na revista Nova Juventude, sua divulgação no país. Terminada a Segunda Guerra, o esperanto ganhou novo impulso entre os chineses. São palavras do líder Mao Zedong: "Tomando-se o esperanto como forma de veiculação do internacionalismo e da revolução, então o esperanto não só pode como deve ser estudado." Entende-se, assim, por que, além de seu ensino universidades chinesas, são notáveis em quantidade e em qualidade as edições locais em esperanto. O periódico El Popola Ĉinio (Da China Popular) e as emissões diárias da Rádio Internacional da China estão entre as mais altas realizações do movimento esperantista, hoje facilmente acessadas pela rede internacional de computadores.
Desde o final do século vinte, aliás, a rede internacional de computadores serviu de base tecnológica à mais nova etapa do movimento esperantista. Cursos, livros, jornais, revistas, páginas informativas, grupos de discussão são inúmeros na rede. Além da forma escrita, o esperanto é falado, musicado e filmado em muitas páginas eletrônicas, contando com expressiva participação da juventude. Serviços de rádio tradicionais, como os da Rádio de Pequim e da Rádio de Havana tornaram-se muito mais acessíveis através do formato eletrônico. Ainda no âmbito da rede internacional, vale ressaltar o jornalismo de combate ideológico, merecendo destaque a versão de Le Monde Diplomatique em esperanto, que conta com textos de articulistas do nível de Ignacio Ramonet e José Saramago, e o Centro de Mídia Independente, que usa o esperanto como uma de suas línguas de trabalho e discussão.
Antes mais europeizado, o movimento esperantista vem crescento para fora do Velho Continente. Na última gestão da UEA, compunham a diretoria uma cubana (Maritza Gutierrez) e um chinês (Yu Tao). Na atual, o presidente é o indiano Probal Dasgupta. No Oriente Médio, ensina-se esperanto em universiadades, como a de Teerã. Na África, estabeleceu-se a última fronteira do movimento, cujo objetivo maior é colaborar com a superação das guerras étnicas, herança deixada pelo colonialismo. Na América, o Brasil desponta com o maior número de esperantistas.
O esperanto conta com apoio oficial da ONU desde 1954, quando o idioma foi recomendado aos países membros. Desse modo, a UEA está entre os parceiros da ONU e da Unesco. Numa perspeciva contemporânea, o movimento esperantista mantém a tese da garantia da diversidade cultural entre os povos, ou seja, os direitos lingüísticos não se separam dos direitos humanos.
Luta-se hoje, por exemplo, contra a hegemonia da língua inglesa, que se faz passar por língua internacional, colocando seus falantes nativos em franca vantagem na comunicação internacional. Ressalte-se que não há nada contra o inglês como língua em si, vista no contexto sociolingüístico de seus falantes naturais. O que se condena é seu uso como veículo ideológico unilateral de produtos e de valores do capitalismo à maneira norte-americana. Não apenas se "aprende inglês", mas se aprende a "gostar", por seu intermédio, da indústria cultural comercializada em livros, músicas, filmes, programas de computador, jogos eletrônicos, sem falar na peregrinação turística a centros de adoração capitalista, como a viagem à Disney ao quinze anos e a Manhatan aos trinta ou mais... O preço do inglês é duplo: de um lado, está o abusivo valor pago para aprendê-lo (bancado pelo estudante, pela família ou pelos impostos na rede pública de ensino...); de outro, está o impagável custo ideológico por ele veiculado. Acrescente-se a essa conta outro custo difícil de calcular: mais da metade das línguas do mundo desaparecerão em menos de cem anos por imposição de línguas geopoligicamente dominantes.
Com séria dedicação e gasto de muito dinheiro em cursos e livros, alguém pode até falar um inglês ou outra língua nacional depois de uns dez anos ou mais, porém esse domínio lingüístico será sempre relativo e jamais poderá ser comparado ao pleno domínio de um nativo. Prova disso é que não se produz uma literatura inglesa de valor fora dos países em que esse idioma é nativo...
No caso do inglês norte-americano, sente-se seu impacto sobre as variedades regionais, sociais e nacionais da própria língua inglesa. Tais variantes periféricas dificilmente aparecem no mercado de ensino de idiomas. O esperanto, ao contrário, por sua estrutura lógica, é dominado em 1/5 do tempo que alguém costuma levar para aprender um idioma nacional, ou seja, em até dois anos. Além disso, pode ser aprendido a baixo preço ou de graça, com ou sem auxílio de professor, por livro ou através de programa multimídia baixado gratuitamente no computador pessoal. E mais: com base propedêutica do esperanto, facilmente se aprendem novas línguas, já que suas raízes são latinas, germânicas e eslavas, e seu sistema de composição se assemelha ao do chinês. Um resultado é que não há tradutores nos congressos internacionais de esperanto. Outro é que a literatura escrita originalmente em esperanto já é mais do que centenária, formando com a traduzida um patrimônio de milhares de obras de autores de todo o mundo.
No campo da literatura está possivelmente a maior diferença entre os resultados do aprendizado do esperanto e o de uma língua nacional. Dificilmente alguém que estuda a língua falada em outro país se aventura a produzir textos literários nessa língua estrangeira. No estudo do esperanto, ao contrário, ninguém se sente estrangeiro, mas cidadão do mundo. A esse sentimento de universalidade, com os pressupostos éticos e ideológicos que lhe são inerentes, soma-se a inesgotável flexibilidade do idioma planejado, que não só permite como mesmo convida o falante e o escritor a criar. No esperanto, garantem isso a sonoridade, a livre disposição dos termos na frase, a precisão do sentido e a autonomia dos radicais, que podem ser separados ou aglutinados conforme a criatividade do usuário da língua. Possivelmente isso explica o fato de que o esperanto tenha nascido juntamente com a poesia e a prosa de seus primeiros adeptos, sem falar das traduções das mais significativas obras da humanidade. No campo da literatura feita em esperanto, está o nome do próprio Zamenhof na poesia (Ho, mia kor', La espero, La vojo, Preĝo sub la verda standardo, Al la fratoj, Pluvo) e na tradução (Heinrich Heine, Charles Dickens, William Shakespeare, Nikolaj Gogol, Friedrich Schiller, Johann Wolfgang von Goethe, Eliza Orzeszko, Hans Christian Andersen, além do Velho Testamento, diretamente do hebraico). Na Rússia e na China revolucionária, houve associações de escritores esperantistas. Na União Soviética são importantíssimos os nomes de Vladimir Varankin (Metropoliteno), Vasilij Eroŝenko (Turo por fali, Unu paĝeto el mia lerneja vivo, Ĝemo de unu soleca animo, Rakontoj de velkinta folio ), Eŭgeno Miĥalski (La unua ondo, Du poemoj, Fajro kuracas, Kantoj de amo kaj sopiro); os húngaros Julio Baghi (Preter la vivo, Pilgrimo; Viktimoj, Hura!, Verdaj donkiĥotoj, Sur sanga tero, Printempo en la aŭtuno, etc.) e Kálmán Kalocsay (Mondo kaj koro, Streĉita kordo, Rimportretoj, Izolo, Sekretaj Sonetoj, etc.); o chinês Bakin (Pereo, Nebulo, Torento, Frosta nokto, etc.); o escocês William Auld (Spiro de l' pasio, La infana raso, Unufingraj melodioj, Humoroj, El unu verda vivo, En barko senpilota, etc. ); o brasileiro Geraldo Mattos (La nigra Spartako, Barbaraj sonetoj, etc.); e muitos outros nomes. Há um numeroso acervo literário em diversas biblioteca mundo afora, destacando-se a preciosa coleção do Museu do Esperanto de Viena, que milagrosamente foi salvo da fogueira nazista.
Cem anos depois da primeira tradução do Manifesto Comunista para o esperanto, nunca foi tão atual o teor profético do texto de Marx e Engels, quando insistia numa internacionalização diametralmente contrária àquela imposta pelo capital. Se um novo mundo é possível, certamente esse mundo não falará passivamente um única língua nacional imposta pela lógica do mercado. Melhor alternativa seria uma língua racional e simples pela sua gramática, democrática e ecológica pelo seu propósito de preservar as culturas locais, culturalmente estruturada, contando hoje com mais de 50.000 títulos publicados entre originais e traduções, falada em mais de 120 países, estudada em universidades e organizada em associações que historicamente se firmaram ao lado daqueles que desejam abolir a exploração do homem pelo homem ou de povos por outros povos. Zamenhof, no Primeiro Congresso Internacional de Esperanto, realizado na França (Boulogne-sur Mer), em 1905, dizia que ali não se reuniam "franceses com ingleses, nem russos com poloneses, mas pessoas com pessoas". Com humildade intelectual, ele deixou uma língua que, segundo exigência sua, não deveria jamais ser propriedade de ninguém. O esperanto é um patrimônio de todos os povos, e só terá sentido revolucionário enquanto servir de instrumento para a humanização da própria humanidade.
José Leite Jr.
Membro do CEPPES e Professor de Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC).