Conjuntura atual: a reforma da Previdência como posta é falácia

A verdade, todavia, é bem outra. A reforma da previdência, como vem se desenhando, atende a interesses exclusivos do capital financeiro. Mas para que possamos compreender a questão é preciso uma análise conjuntural mais abrangente. Então, que a façamos, ainda que resumidamente.

Levados a repetir quase que mecanicamente os dados que são veiculados pela grande mídia, a maioria das pessoas acredita que a reforma da previdência, tal como posta, é inevitável, sob pena de, não realizada, quebrar o país.

A verdade, todavia, é bem outra. A reforma da previdência, como vem se desenhando, atende a interesses exclusivos do capital financeiro. Mas para que possamos compreender a questão é preciso uma análise conjuntural mais abrangente. Então, que a façamos, ainda que resumidamente.

Estudos realizados por pesquisadores do Instituto Federal de Tecnologia de Lausanne, na Suíça, indicam que das 43 mil maiores empresas mundiais, que atuam nos segmentos de petróleo, mineração, armamentos, tecnologia, sementes, medicamentos, etc., 75% são controladas por entidades financeiras e estão nas mãos de grandes bancos internacionais. Entidades conhecidas, como JP Morgan, Goldman Sachs, Barclays, UBS, Deutsche Bank, Citigroup, dentre outras.

Estudos como esse servem para abrir os nossos olhos sobre o discurso do poder de mercado. Tal poder não existe, pois está concentrado nas mãos de grandes bancos, muitos dos quais precisaram ser salvos na crise de 2008, por estarem, nas versões divulgadas, seriamente ameaçados de quebra, que poderia levar ao colapso todo o sistema financeiro mundial.

Instituições que dominam o mundo - o FED, Banco Central americano, que é banco privado no interesse de bancos privados; o BCE, Banco Central Europeu, cujo conselho é controlado por bancos privados; o FMI, que atua no interesse de grandes corporações; e as chamadas Agências de Risco - controlam, com o apoio da grande mídia, toda e qualquer política econômica da maioria dos países do mundo, em especial dos países tidos como subdesenvolvidos.

Nessa conjuntura global, 99,9% da população paga a conta para que 0,1% seja dona das grandes corporações. Isso sempre foi assim, mas o problema é que, com o exaurimento, ou com a maior dificuldade em acessar recursos no planeta, esses grupos precisam manter seus ganhos nos mesmos patamares outrora experimentados e, até mesmo, expandi-los. E, para tanto, um dos caminhos é avançar sobre os direitos dos trabalhadores e sobre políticas sociais de países que adotam, ainda que de maneira insatisfatória, o welfare state.

Como o capitalismo vive uma fase de financeirização, com a criação de dinheiro fictício - os chamados derivativos, é preciso um sistema que alimente essa prática. Dados do BIS - que é o Banco Central dos bancos centrais, divulgados em 2011, indicam que tínhamos, naquele ano, em derivativos circulantes 11 PIBs mundiais, ou seja, o equivalente a 10 PIBs mundiais estariam "voando". É um mundo financeirizado lotado de "papéis podres". Essa financeirização mundial é alimentada pelo chamado sistema da dívida.

Sistema da dívida é o processo em que os tesouros dos países injetam dinheiro em bancos e essa dívida é computada como sendo dívida pública. Desde quando injetar dinheiro público em banco é dívida pública? O que o Estado recebeu em troca? Nada, só o passivo. Aqui mesmo, no Brasil, esse processo aconteceu com o PROES e o PROER (1995-2000), com emissão de títulos a bancos brasileiros, privatizando lucros e socializando os prejuízos.

Esse sistema da dívida dita a principal meta da política econômica brasileira (e de muitos países): a meta do superávit primário - que é a economia de recursos para pagar a dívida. No orçamento da União executado em 2014, 45,11% foram destinados a juros e amortizações da dívida. E aqui entra o xis da questão com relação à previdência social - no mesmo ano (2014), 21,76% dos recursos do orçamento da União foram gastos com a previdência social. Como não há mais de onde extrair riquezas do país para transferir ao setor financeiro, já que Educação (3,73%), Saúde (3,98%) e Trabalho (3,21%) não chegam a 4% do orçamento cada, o único naco com margem para cortes expressivos de direitos para entrega de riquezas ao capital financeiro é a previdência social. Para o economista e professor da Unicamp Serge Goulart, o que está em jogo é apropriação de cerca de 134 bilhões de reais por ano, para injetar diretamente no mercado financeiro.

O sistema financeiro determina o modelo econômico, os privilégios financeiros e o sistema legal ('morde' mais de 40% do orçamento da União com base em leis votadas pelo sistema político, que é financiado pelo sistema financeiro) e ainda induz você a acreditar que a única alternativa para salvar o país é retirar os já combalidos direitos dos trabalhadores e cortar programas sociais inclusivos.

Além disso, o sistema da dívida corrompe o sistema político para retirar direitos sociais e se aproveita dessa mesma corrupção, no varejo, para, com a ajuda da mídia, encobrir a corrupção sistêmica que alimenta esse ciclo perverso em favor das instituições financeiras. Por acaso você já se deparou com divulgação na mídia sobre auditoria da dívida pública? Sabe que ela é prevista constitucionalmente (art. 26 do ADCT), mas nunca foi realizada? Muitos, provavelmente, sequer ouviram falar sobre. Muitos outros sequer conseguirão estabelecer uma correlação entre dívida pública, auditoria da dívida e reforma da previdência.

Mas, voltando ao tema específico da Previdência, pode se dizer que, no Brasil, um dos objetivos do sistema financeiro com relação à previdência social já foi atingido, com a criação do fundo de aposentadoria do servidor público (Lei 12.618/2012). O dinheiro descontado dos servidores (e do governo, pois também há contribuição deste), por se tratar de fundo, será investido em títulos. Alguém tem dúvida que os fundos investirão os recursos arrecadados nesses títulos "voadores" já referidos (divulgados pelo BIS), trazendo prejuízos aos servidores em benefício das instituições financeiras? Esse é um filme já conhecido com relação aos fundos de pensão dos Correios e do Banco do Brasil.

O outro (ou outros) objetivo (s) está em curso com a propalada reforma da previdência. Basta ligar a TV, abrir um sítio eletrônico de notícias, folhear um jornal e lá está estampado o tema, com enfoque para um estrondoso déficit, um risco de quebrar o país se não mudarmos as regras de aposentadoria e concessão de benefícios. Todavia, o déficit é um sofisma. Não existe. A seguridade social é superavitária.

Para compreender melhor, em primeiro lugar é preciso situar a previdência social no contexto que lhe é definido pela Constituição Federal. O artigo 194 da CF/88 descreve que "A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social". Estabelecida esta premissa, qualquer análise isolada (saúde, previdência, assistência social), por si só, já restaria prejudicada. No entanto, a questão é ainda mais grave, pois além da análise isolada no componente previdência social, o governo também burla a contabilidade orçamentária.

Na realidade, a seguridade social, ainda que tenha suas políticas conduzidas de maneira inconstitucional pelos governos, obtém superávit anualmente. Em 2012, foi de 82 bilhões e 690 milhões; em 2013, de 76 bilhões e 241 milhões e, em 2014, de 53 bilhões e 892 milhões. Ocorre que o governo alimenta o déficit da previdência por meio de manobras contábeis e a mídia, a serviço do capital financeiro, propaga o déficit amedrontando incautos. Para o doutor em ciência econômica da Unicamp, professor Eduardo Fagnani, funciona da seguinte forma:

... a Previdência (rural e urbana) faz parte da Seguridade Social, ao lado da Saúde e da Assistência Social. Para forjar o déficit, o governo primeiro coloca a Previdência Rural como despesa da Previdência Urbana, depois dá o calote e não paga a sua parte da contribuição para a Seguridade Social e, para concluir, ainda pega o que tem de saldo positivo do caixa e usa para os seus próprios gastos. "Em três atos, fere diversos artigos da Constituição Federal de 1988, que rege o tema, e cria a base de fatos que irão, no final das contas, gerar o mito do déficit".

Segundo dados da ANFIP - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, o Governo lança em um mesmo quadro as despesas do Regime Geral de Previdência Social - RGPS, do Regime Próprio de Previdência dos Servidores - RPPS, despesas previdenciárias dos militares e ainda outros encargos previdenciários da União, como anistia e indenizações e compara com as receitas das contribuições dos trabalhadores para o RGPS e a dos servidores e pensionistas para o RPPS. Os dados divulgados pela ANFIP registram que:

Ao aglutinar esse conjunto de informações, misturando regimes previdenciários propriamente ditos, com encargos de anistia e de indenizações e com a previdência militar (onde não há contribuição para os benefícios de aposentadoria – há apenas uma contribuição simbólica para as pensões), a conta não se presta a informar.

Ao misturar elementos tão díspares, não é de se estranhar que as contas apontem para um déficit de quase R$ 150 bilhões em 2014. Com esse descompromisso com a realidade e os fatos é fácil justificar reformas para corte de direitos.

Ou seja, o governo promove artificialismos em sua contabilidade orçamentária, burlando o disposto no art. 195 da Constituição Federal; se apropria de parte das contribuições do PIS/COFINS que não poderiam integrar o orçamento da União, pois deveriam ir diretamente para o caixa da Seguridade Social; não repõe para a Seguridade Social o rombo das desonerações fiscais e, para coroar, ainda contabiliza o pagamento de sua contribuição para o Caixa da Seguridade Social como se fosse despesa da previdência, quando na realidade é uma determinação da Constituição Federal para formar o caixa da Seguridade (regulamentada pela Lei 8.212/91).

Assim, se lhe disserem que a reforma da previdência é inevitável, necessária, urgente, inadiável, diga que sim, mas diga que é para que o governo cumpra o que determina a Constituição Federal, parando de se valer de artificialismos contábeis para enganar a maioria e entregar o pouco que resta de nossos direitos sociais ao capital financeiro.

Para mudar esse quadro é preciso que as pessoas se conscientizem e parem de agir como papagaios, repetindo, sem qualquer reflexão, falácias idealizadas pelas estruturas dominantes de poder com objetivo de solapar direitos sociais. A solução é a busca do conhecimento e, a partir do conhecimento, a conscientização e o empoderamento para buscar mudar a triste realidade que nos circunda. Se te falarem sobre reforma da previdência, no viés que tem sido defendido, inclusive na "ponte para o futuro", demonstre um mínimo de conhecimento: fale sobre os artificialismos contábeis do governo que levam ao déficit, correlacione com a dívida pública e exija a auditoria desta dívida, como previsto na Constituição Federal.

Eudes Neves da Silva Santana. O autor é servidor público.

Utiliza como fontes: 1) Tese de Doutorado "A Política Fiscal e a Falsa Crise da Seguridade Social Brasileira”, de Denise Lobato Gentil, pela UFRJ: http://goo.gl/E8R0VR; 2) Análise da Seguridade Social de 2013, feita pela ANFIP: http://goo.gl/H4bZIA; 3) Análise da Seguridade Social de 2014, feita pela ANFIP: http://goo.gl/VQ0ABJ; 4) MetalRevista #9: http://simec.com.br/docs/revistas/9.pdf; 5) www.bcb.gov.br; 6) www12.senado.leg.br; 7) www.auditoriacidada.org.br; 8) http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=rede-capitalista-domina-mundo&id=010150111022&mid=50#.V187JaK7Acs; 9) http://www.smabc.org.br/Interag/temp_img/%7BBECDF58E-90DD-4C7E-8EDB-E9E881AC237E%7D_11-poder-corporativo-mundial.pdf.