A dívida e a “roleta americana”

O último mês foi marcado pelo debate no Congresso dos EUA acerca do montante da dívida pública deste país, votado no dia 02/08. O não aumento do teto de endividamento legalmente permitido poderia levar à moratória dos EUA, carregando consigo, numa roleta russa, boa parte da economia capitalista ao redor do mundo.

O último mês foi marcado pelo debate no Congresso dos EUA acerca do montante da dívida pública deste país, votado no dia 02/08. O não aumento do teto de endividamento legalmente permitido poderia levar à moratória dos EUA, carregando consigo, numa roleta russa, boa parte da economia capitalista ao redor do mundo.

A dívida dos EUA é constantemente ampliada por um déficit estrutural inerente à divisão internacional do trabalho que foi-se construindo a partir da década de 1970 e justamente no marco da superação dialética das crises precipitadas neste período, que chegaram a colocar em questão a hegemonia econômica (insustentabilidade do padrão dólar-ouro e choques do petróleo) e militar (derrota no Vietnã) dos EUA. Está, portanto, intimamente associado aos processos de globalização neoliberal e de financeirização especulativa, que, por sua vez, interessam sobremaneira às frações de classe e grupos sociais hegemônicos no país. Amplia-se ainda pela inescapável rede dos gastos de guerra, incentivados pela importância geoestratégica do controle sobre as fontes e rotas de petróleo e gás natural e pela necessidade econômica e política de colocar em uso o arsenal produzido por seu complexo tecnológico-industrial-militar.

Em maio, a dívida atingiu o teto de U$ 14,3 trilhões, ou cerca de doze vezes o PIB do Brasil. Com o novo teto, poderá chegar a US$ 16,4 trilhões, ou 115% do PNB dos EUA. Isso significa que, mesmo que os EUA não consumissem uma migalha de tudo que é produzido sob sua bandeira ao redor do mundo durante o espaço de um ano e tampouco utilizassem os valores fictícios criados no processo de financeirização, ainda encontrariam dificuldades em quitar sua dívida pública, virtualmente impagável.

O mecanismo de funcionamento da coisa é, porém, outro. Com o dólar-flexível, a posição de único emissor do padrão monetário internacional (lastreado apenas na hegemonia estadunidense) confere aos EUA, enquanto o dólar ocupar este papel, um poder de barganha com o qual nenhum outro Estado conta. Ainda hoje, a imensa maioria das transações comerciais internacionais, dos títulos securitizados e das reservas dos demais países está denominada em dólares, de modo que o êxito da economia dos EUA torna-se all-in no enorme jogo geopolítico de pôquer, no qual aposta-se com as vidas dos povos do mundo. 8% da dívida é frente à China e 6% ao Japão – cerca de um terço da mesma tem como credores outros governos, de modo que, no atual padrão de acumulação, a hegemonia do dólar e dos EUA se interdependem dialeticamente.

Note-se que no atual contexto – da crise já generalizada –, porém, a economia mundial talvez não agüente que a situação se esgarce ao ponto do artifício de que os EUA busquem resolver sua crise interna através da influência de sua política monetária, como ocorreu em 1979. Assim, capitalistas de todas as partes respiraram tranqüilos por um momento – que pode muito bem ser breve – com a manutenção pelo FED da taxa básica de juros dos EUA na reunião deste dia 09/08. A força ofensiva dos EUA – e da direita ao redor do mundo – aumentará, entretanto, com sua aparente fragilidade.

Seria ingênuo, portanto, pensar que os Republicanos ou mesmo o Tea Party realmente barrariam neste momento o crescimento da dívida, no qual está assentado todo o atual padrão de acumulação capitalista e seus próprios lucros. Ambos estavam interessados em melhorar a correlação de forças interna, projetar-se politicamente e garantir seus interesses, o que conseguiram, uma vez que o grosso dos cortes acordados como contrapartida do aumento do teto se dará no gasto social e o orçamento bélico não deve ser expressivamente alterado.

Por outro lado, também é muito ingênuo quem não reconheça que a própria existência do debate é termômetro de um ponto crítico, não por coincidência, justamente após a primeira queda expressiva no PIB dos EUA desde 1929 e a precipitação – com epicentro neste país – da maior crise econômica mundial desde então, ainda em desdobramento. A corrosão moral de sua posição hegemônica, apoiada não apenas na força, mas no consenso, e a luta de classes dentro dos próprios EUA, pode vir a ser seu tendão de Aquiles.

O atual impasse reflete, portanto, a luta de classes nos EUA e no mundo e, se não existe algo como “vazio de poder” ou “vazio hegemônico”, será também a luta de classes que determinará em última instância o desenrolar dos acontecimentos.

Marina Machado